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Extraordinário

Extraordinário

Matheus Fiore - 3 de dezembro de 2017

Mesmo que seja realidade na infância e na adolescência da sociedade ocidental há décadas, o bullying só se tornou tema de ampla discussão nos últimos anos. Com a ascensão do debate, então, vieram seus reflexos na cultura e no entretenimento, como por exemplo o livro Extraordinário, de Raquel Jaramillo. A obra acompanha Auggie, criança que, nascida com deformidades em seu rosto devido a problemas genéticos, precisa enfrentar os desafios de ser inserido em uma sociedade que não só não o compreende, como não o acolhe. O longa homônimo de 2017, dirigido por Stephen Chbosky (As Vantagens de Ser Invisível), é a adaptação desta obra, e trata não só da jornada de Auggie, mas das demais figuras ao seu redor que lidam de diferentes formas com o bullying e com a dificuldade de aceitação.

Na construção do tema, Chbosky faz uso de múltiplos pontos de vista, dividindo o filme em capítulos, cada um para um dos principais personagens. Na introdução, como deve ser, Extraordinário foca em nos inserir no dia-a-dia de Auggie, nos apresentando aos seus familiares e novos colegas de escola. Pelo fato de o protagonista ter sido educado em casa até os dez anos, o processo de descoberta da vida escolar ocorre juntamente com público e personagem principal.

Já quando toda a trama está clara para o público, Extraordinário aposta em capítulos para desenvolver seus personagens coadjuvantes. Com isso, a obra deixa de ser uma trama focada apenas no ponto de vista da vítima do bullying, apostando em outros ângulos. Via, irmã mais velha de Auggie, por exemplo, é, desde a infância, solitária, pela atenção que seu irmão caçula necessita por parte dos pais. Para estabelecer essa solidão da personagem, há um enfoque na ausência de sua avó, em cenas que mostram a jovem em um mesmo ambiente em duas situações: no passado (acompanhada pela avó) e no presente (sozinha). Nessas cenas espelhadas, há uma interessante diferenciação na fotografia, que é mais acinzentada no presente, diferente da atmosfera calorosa trazida pela presença da avó.

Os outros capítulos também são importantes, mas nem tão bem trabalhados. O melhor amigo, Jack, e o bully, Julian, acabam sendo ferramenta de uma manipulação emocional forçada por parte da direção, que busca explorar ao máximo a crueldade dos dois a fim de, posteriormente, humanizá-los e fazer o público compreender seus contextos familiares, que os levam a serem cruéis com Auggie. Claro, é importante entender que o bullying não é simplesmente originado da crueldade humana, e sim de um ambiente tóxico e opressivo que manipula crianças, seres humanos sem discernimento e com caráter em formação, mas navegar apenas entre os extremos (os personagens vão de anjos a demônios, assim como seus pais) é maniqueísta demais, soando pouco humano.

O uso do espaço é um dos pontos mais elogiáveis de Extraordinário. Na cena em que Auggie visita sua nova escola pela primeira vez, por exemplo, vemos o uso de planos mais fechados, com ênfase nas sombras, criando nos corredores escolares uma atmosfera opressora, quase como um calabouço. Conforme o menino se adapta, porém, notamos o uso de planos mais abertos e com mais iluminação. O espaço também é bem aproveitado na construção da irmã, Via, que é constantemente fotografada em planos abertos que ressaltam cenários vazios, caracterizando, ora sua solidão, ora a ausência da avó.

Nos outros personagens, há elementos sutis mas muito potentes no desenvolvimento. Isabel, mãe de Auggie e Via, por exemplo, diz que teve sua tese de mestrado suspensa quando passou a dedicar sua vida a cuidar do filho – tese essa que a personagem, quando tenta retomar, encontra dificuldades pelo fato de o conteúdo estar contido em um disquete, tecnologia obsoleta nos dias de hoje. Com isso, cria-se o peso de todo o tempo em que a vida profissional de Isabel foi suspensa (e até sacrificada) em nome do amor por seu filho.

O roteiro consegue ser ainda mais sutil ao, numa discussão entre o protagonista e uma amiga negra, inserir uma fala da menina na qual ela diz que “odeia ser acusada”, sugerindo que, se com Auggie o bullying é por seu rosto desfigurado, com ela seria por sua raça. Todavia, a questão racial é a mais subaproveitada de Extraordinário. Há dois personagens negros imprescindíveis para a trama, Summer e Justin (o namorado de Via), mas eles acabam só sendo utilizados como escada para os personagens com que se relacionam – no caso, Auggie e Via. Por mais que o foco de Extraordinário seja não a questão racial, mas a questão social, há de se ressaltar que temas importantes como o racismo surgem de maneira extremamente sutil, tão sutil que, aparentemente, nem o diretor percebeu o potencial deles em sua narrativa.

Mesmo que tente aproveitar múltiplos pontos de vista a fim de criar não uma visão, mas um panorama abrangente sobre o bullyingExtraordinário faz questão de lembrar que, até quando a trama adota perspectivas diferentes, a narrativa sempre será comandada pelo próprio Auggie. O protagonista é, além do centro dramático da obra, o único que guia a narrativa por meio de sua imaginação. Quando o personagem sente-se seguro, por exemplo, surgem imagens dele vestido como astronauta, ou surgem personagens de filmes a que ele assiste em sua escola. Isso ajuda não só a manter uma coesão narrativa (a existência de um protagonista é essencial para o funcionamento do enredo), mas também para criar uma conexão emocional maior com Auggie do que a que ocorre com os demais personagens. Mesmo que tenhamos acesso aos pontos de vista de diversos personagens, somente Auggie nos permite visualizar sua imaginação, nos tornando mais próximos.

É interessante ainda como se cria, sem sequer uma linha de diálogo sobre isso, uma relação de opostos entre os irmãos Auggie e Via. Enquanto o primeiro tenta se esconder e fugir do mundo, algo que notamos pelo desejo do menino de vestir sempre um capacete de astronauta (que indica tanto seu instinto de reclusão quanto seu desejo de fuga do mundo – o astronauta, em uma visão simplificada, trabalha “no espaço”), a irmã busca ser notada – e vai atrás desse holofote de forma literal, matriculando-se na turma de teatro da escola.

Extraordinário pode soar clichê, mas traz um conjunto agradável de análises sobre seus personagens. Alguns deles mais aprofundados, outros, nem tanto. Todos, porém, de forma eficiente para a construção de um cenário onde o bullying não se resume a uma vítima e um culpado, mas sim a uma estrutura educacional que começa nos lares conturbados e termina com na violência de quem extravasa suas dores fora de casa. Emocionante sem ser apelativo, Extraordinário tinha tudo para ser um Oscar bait recheado de clichês, mas é uma obra cheia de sensibilidade e humanidade.

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