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Dançando no Escuro: Lady Gaga decola e se perde no caminho

Dançando no Escuro: Lady Gaga decola e se perde no caminho

Lady Gaga recalcula a rota e ensaia novos destinos com Chromatica

Maicon Firmiano da Silva - 28 de maio de 2020

John Waters anunciou a morte do mau gosto após os anos Trump. Nunca existiram tempos tão nebulosos para a negociação entre uma noção de alta-cultura e a sujeira sincera do underground. Assim como verdade e mentira coexistiam em corda bamba, os últimos anos rasgaram qualquer tratado sobre a distinção entre real e fabricado, mau gosto e bom gosto. Nenhum artista previu essa mudança de paradigma estético de forma tão abrangente quanto Lady Gaga.

Sujeira na pista

Em 2008, a música pop norte-americana vivia momento pós-Timbaland. Tempos de um som característico e elástico, que ingeria do hip-hop e flertava timidamente com o eletrônico. Até Björk entrou na dança, dadas as suas idiossincrasias. Em Blackout (2007), Britney Spears sugere uma linhagem de pop que abraça o europop e suas vertentes como catarse dos momentos mais obscuros. É com Just Dance, porém, que Lady Gaga inaugura o som que seria perseguido, até ser superado. Se nos últimos anos figuras como Billie Eilish ou Rosalía exploram angústias comuns ao mundo via uma plástica excêntrica, tem saldo a pagar à Mãe Monstro.

Gaga ressignificou o que Elton John e Grace Jones já haviam feito por prisma pós-capital, emulou a trajetória de Tony Manero em canção, em uma Nova York ainda mais infernal. As extravagâncias de outrora, que agora, só podiam existir sem medo em meio ao emaranhado da pista de dança. O último lugar a salvo da desesperança do mundo em meio a crise econômica e desespero generalizado. Havia um senso de normalidade mesmo em faixas que apresentavam conceitos visuais que dobravam o objetividade das canções a criações de surrealismo pop. O disco-stick de Lovegame, por exemplo, construção imaginária de uma fábula onde Oz existe sob um globo espelhado.

No ego, a sinceridade

Bad Romance anuncia o lirismo gótico que a acompanharia nos anos seguintes. Hitchcock, Psicose e doença. Elementos que compõem uma cosmética de estranhamento, que conversa com uma sonoridade ainda mais cósmica e escrachada. Marilyn, Judy e Sylvia, Jesus e Kubrick, figuras que para Gaga preenchem um mosaico ilustrativo mas não antropofágico. Não exatamente consome essas figuras e as reinterpreta, quanto as usa como cores para pintar a escuridão da fama que ela perseguia. Em Born This Way (2011) ela mira o interdimensional enquanto examina o íntimo e o social. Se abre aos sintetizadores pulsantes que cheiram a fumaça queimada e enxofre, mais assumidamente que no antecessor. Se em The Fame/The Fame Monster sobrevoa de forma ilustrativa seus temas preferidos, aqui é onde declara sua missão. Enverniza seu disco mais nervoso com mensagens humanistas, salpicadas pelos habituais traços de excentricidade, como na industrial Goverment Hooker.

Em Artpop (2013), Lady Gaga ensaia sua decolagem. Envolto a recém desenterrados rumores sobre intervenções de gravadora, parcerias canceladas e frustração profissional, se torna o projeto mais divisivo em sua discografia. Mesmo assim, seu mais pessoal. Aqui estão todos os elementos mais efervescentes nas imagens musicais de Lady Gaga: o profano, o horror, a pista, a ficção, a desassociação da realidade. Deserdado por boa parcela dos fãs, é o verdadeiro manifesto artístico de uma elusiva Stefani Germanotta, que escondida atrás do pitoresco parecia evitar trazer o imaginário coletivo para perto de si, a apenas, refleti-lo. Artpop é um disco de exageros, que abraça o brega e o bobo, que debate o mau gosto e nisso, encontra um equilíbrio com a Gaga que brincava desde Just Dance com essa dualidade. A persona pública de Lady Gaga também anda uma corda bamba, entre sinceridade e farsa, da seriedade de suas entrevistas ao absurdo de sua produção audiovisual. Não existe maneira de se atingir esse equilíbrio sem autoconsciência. Gaga só esqueceu de convidar o mundo pra brincadeira.

A verdade na síntese

Mesmo que uma egotrip inflamada, Artpop carrega o melhor resumo da construção Lady Gaga. O exagero está ali pra quem tiver a paciência para tolerar e é nisso que está o revelador. O que é mais divertido que a pura egomania? Com o fracasso, Gaga recalcula a rota, iniciando um trajeto de desconstrução que tinha como paradas momentos de reinvenção em gêneros mais próximos da tradição cancioneira dos Estados Unidos. Após a incursão no Jazz com Cheek to Cheek (2014), vem o anunciado álbum “mais pessoal”, Joanne (2016), que a vê adotar um olhar Springsteeniano sobre seu passado, e principalmente sobre o presente. Nesse trabalho ela se posiciona como uma Gaga orgânica, de cara limpa. Teria chegado a esse ponto não tivesse sentido uma poda criativa que sabotou sua ascensão ao espaço?

A verdade não está em se declarar verdadeiro, em anunciar intimidades. A verdade é feita de somas, de manias e tendências que compõem o verdadeiro mosaico de um artista. Não existe verdade que se possa sintetizar, muito menos que exista sem a síntese. Artpop representou essa síntese criativa, e Joanne, sua desconstrução. Ambos posicionamentos são complementares, nunca opostos. Se em Artpop ela foi julgada por tentar demais, Joanne diminui a escala para um voo maior, mesmo não se tendo certeza do novo destino.

Tudo que eu queria é amor

Em Nasce Uma Estrela, seu maior personagem: uma personagem próxima de sua verdadeira persona. Ally permite um acompanhamento nessa jornada pelo simples e comum (boa parte dos compositores de Joanne a acompanham nas músicas para a trilha do filme), musicalmente e plasticamente. Mas somente em 2020 é que Gaga faz um retorno ao pop sintetizado que popularizou na virada da última década. A campanha de divulgação de Chromatica (2020) promete um retorno a forma, murais inspirados nas criaturas de H. R. Giger e estética que passeia por ficção científica e Bayonetta.

Desprovida das texturas sonoras que cravaram sons únicos a cada disco, Gaga canta novamente sobre superar a dor pela dança, mas em reflexo caricato. O disco construído por ela e colaboradores (Bloodpop é a mão mais presente na produção) emula o espírito da house disco noventista, um resgate aos tempos pós-escapismo e pré 11 de setembro. Declara o desejo de reclamar a pista, de retornar a um espaço de inocência pela catarse. Inóspito como as pistas de dança nesse momento de isolamento, o ambiente sonoro do álbum segue linha reta ao reconstruir um momento musical feito de colagens e curvas, algo que Gaga sempre fez com originalidade. Em faixas como Sine from Above ou Stupid Love, há o vislumbre desse impulso em combinações dos sintetizadores oitentistas a refrões EDM, esse resgatado diretamente do longínquo 2010.

Ainda assim, a maior profanidade de Chromatica é seu lirismo que reduz uma figura de reinvenção a mero adorno plástico. John Waters estava certo, não existe mais propósito em examinar o bom e o mau gosto, e Gaga sabe disso. Se um dia Lady Gaga já costurou tratados sobre imagem e a plasticidade da fama, parece ter deixado sua curiosidade em se descobrir à deriva na decolagem. Prefere ser direta e pedir amor, mesmo que isso signifique o que você quiser.

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