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Darren Aronofsky, “mãe!” e a Bíblia

Darren Aronofsky, “mãe!” e a Bíblia

Matheus Fiore - 20 de setembro de 2017

Diante da enxurrada de comentários na internet de pessoas que não conseguiram extrair a mensagem que Darren Aronofsky desenhou em mãe!, decidi escrever este artigo que complementa a crítica, que pode ser lida aqui. O artigo abaixo está recheado de spoilers da obra, portanto, sugiro ler apenas após sua sessão.

Mesmo que seja válido interpretar mãe! como uma análise do extremismo ou do egocentrismo de alguns artistas (alguns até escolhem  ver o personagem de Bardem como uma representação do próprio diretor), é nítida a intenção de Aronofsky de aprofundar-se em sua análise bíblica. Se em Noé o americano tentou ser sutil ao tratar do tema sempre de forma subjetiva, aqui o  caminho é oposto e o cineasta é excessivamente objetivo.

Adão, Eva, o Éden e o Fruto Proibido

Comecemos pela cena de abertura. Há o nada, a escuridão, até que Deus (Bardem) dá luz e vida ao Éden, em uma metáfora para a criação do mundo. O cristal nada mais é que o fruto proibido. Jennifer Lawrence vive uma personificação da natureza, que surge juntamente ao Éden e passa, então, a ser o objeto de inserção do espectador na obra. Pelos olhos da natureza observamos as escolhas de Deus.

Ed Harris e Michele Pfeiffer talvez sejam os elementos mais fáceis de identificar na obra. Adão (Ed), que aparece inclusive com um buraco na costela (!),  ganha, no dia seguinte, uma esposa, Eva (Michele). Os dois, então, surgem como adoradores de Deus. Ao provarem o fruto proibido (quebrar o cristal), tornam-se pecadores (a Natureza os vê fazendo sexo em um cômodo da casa). Aqui revela-se a grande sacada de Aronofsky: naquele momento, Deus poderia (e deveria) ter punido ou orientado suas criações. Mas contém sua raiva e os perdoa justamente por serem adoradores. Ao negligenciar o castigo aos seus fiéis, Deus torna-se conivente com suas falhas.

Mas onde entra a visão de Aronofsky nessas releituras?

Com tais representações, Aronofsky quer dizer que o Deus bíblico é uma figura egocêntrica, egoísta, que cria mas não educa, perdoando quaisquer falhas de seus fiéis (as pessoas que invadem e depredam a casa, por depender da adoração deles para alimentar seu ego, não sofrem as consequências). A crítica, infelizmente, torna-se óbvia demais em momentos como o das oferendas, quando a “casa” criada por Deus está praticamente destruída, mas Ele só se importa com as oferendas dos religiosos. No terceiro ato, a obra ainda abraça a exposição por fazer Bardem praticamente quebrar a quarta parede e dizer “oi, sou Deus”.

Aronofsky ainda encontra espaço para, no ato final, criticar os seguidores de Deus e a relação da humanidade com a natureza. Perceba como há, na casa, pessoas que  se posicionam como representantes de Deus, concedendo bençãos para seus devotos, uma cutucada na banalização da palavra bíblica. Já com Lawrence, que termina espancada pelos seguidores de seu marido, a ideia do cineasta é dizer ao público que as falhas humanas não são questão de livre arbítrio ou má interpretação das palavras de Cristo, mas sim culpa da negligência (novamente) de Deus diante das atitudes de suas criações  que, desorientadas, são consumidas pelo ódio e acabam atacando e destruindo a Natureza/Mundo. Bardem falha como marido, em seu papel de proteger sua esposa, que estava debilitada, e seu filho recém-nascido, assim como Deus falhou em proteger a Natureza/Mundo e seu filho, Jesus, que terminou crucificado por suas criações.

Ainda há (em excesso) dezenas de outras referências bíblicas. Desde a presença de Caim e Abel, os irmãos vividos pelos também irmãos Domhnall e Brian Gleeson, até o próprio Dilúvio (a pia próxima à cozinha que é quebrada e inunda a casa) e o Armagedom (a explosão que recomeça o mundo). Tudo está lá, mas, infelizmente, nem tudo consegue ter uma função narrativa clara, servindo apenas como referência ou adereço temático. O que a obra faz muito bem é, por nos inserir na ótica da Natureza, mostrar como a história do mundo (de acordo com a Bíblia) é efêmera e destrutiva. Sempre graças à negligência divina, já que Deus poderia, a qualquer momento, intervir e expulsar ou castigar suas criações, mas estava muito ocupado sendo bajulado por elas.

E a obra, afinal, funciona?

mãe! é uma obra extremamente pretensiosa, que almeja mais do que realiza. O filme reinterpreta algumas das mais importantes passagens bíblicas a fim de mostrar que o mal presente no mundo é oriundo apenas do descaso de seu criador, que, ao fim da projeção,  comporta-se como uma criança mimada, mostra-se indiferente aos sentimentos de suas criações e de sua amada Natureza. Como uma criança que perde num jogo de videogame e não aceita a derrota, Deus apenas “reseta” seu mundo e começa de novo, num processo de looping eterno na busca pela perfeição que não existe justamente por Ele não entender que não basta criar, há de se educar.

Talvez o problema de mãe! não seja simplesmente a exposição do roteiro em seu terceiro ato, mas sim o caminho que a obra trilha em seu último terço. Nos dois primeiros atos, o longa funciona de forma análoga: temos a história do casal importunado por visitantes inconvenientes e a relação entre Deus, suas criações e a Natureza. A partir do terceiro ato, porém, a obra troca o real pelo surreal sem que haja, primeiro, um rompimento total com a realidade. O real e o análogo se tornam um só, mas a obra deixa de funcionar como horror psicológico e ganha apenas significado bíblico. O resultado é que o filme conta duas histórias, mas uma, simplesmente, não tem o menor carinho em seu desfecho.

Se quiser ler mais sobre a obra, nossa crítica sem spoilers pode ser encontrada aqui.

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