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De Bakersfield Para Mojave

De Bakersfield Para Mojave

A paisagem e a locomotiva

Nicholas Correa - 18 de julho de 2021

Quando James Benning lançou RR em 2007, um aspecto interessante o destacava de seus outros empreendimentos até então. Nos seus filmes anteriores, a duração de cada plano era arbitrária. Em TEN SKIES, cada plano durava dez minutos, já em um filme como El Valley Centro, cada plano durava dois minutos e meio. RR, que consiste em 43 planos de trens entrando e saindo do plano, rompeu com a arbitrariedade da duração, cada plano durava apenas o tempo em que o trem se afirmava como presença no plano. Nesse filme o cineasta permite que elementos externos, tanto à máquina cinematográfica quanto à ele mesmo como autor/retratista, sirvam como ativadores dos planos e das temporalidades.

É quase inevitável falar de RR quando se fala em De Bakersfield Para Mojave, não só pelo motivo visual dos trens e das ferrovias que cortam as paisagens americanas, como por este novo filme complexificar essa relação entre presença e duração. Desta vez o projeto parece mais enxuto, ao invés de 43 planos nós temos nove; ao invés de planos de várias ferrovias ao redor dos Estados Unidos acompanhamos uma ferrovia na Califórnia e com cada plano acompanhando o trajeto de maneira aparentemente linear. Parece haver em De Bakersfield Para Mojave uma tendência maior ao controle, um controle que não se faz pela disposição dos elementos na cena, mas pela maneira que o registro recorta e dispõe tanto o ambiente quanto o tempo.

Em cada um dos nove planos existe uma enorme ênfase no que está ausente na imagem. Antes do trem surgir dentro do quadro e ocupar sua parcela de tempo no plano, Benning dedica uma parcela de tempo equivalente, ou talvez maior, para filmar os trilhos vazios, um tempo de antecipação à presença da máquina. Às vezes, o som que parte do extracampo nos anuncia a chegada iminente do trem, sejam os apitos ao longe ou os sinais de tráfego disparando. Porém, nesses tempos mortos, Benning nos permite vivenciar um jogo de contrastes que já estava presente em RR, só que agora de maneira ainda mais intensa. A contemplação da paisagem, a serenidade quase estática do plano, é violentada com a presença dos trens; em alguns planos, as locomotivas são as únicas presenças móveis. Com o tempo dilatado, colocando ausência e presença lado a lado, o contraste é ainda maior.

Mas se RR, os trens afirmavam uma soberania sobre sensibilidade do cineasta, aqui Benning parece, em parte, tomar as rédeas dessa situação. Há mais elementos arbitrários aqui. Além do escopo reduzido de uma só ferrovia e do tempo de contemplação e antecipação, De Bakersfield Para Mojave também mostra um grande cuidado na composição de cada quadro. Alguns quadros são previsíveis, como o primeiro, que mostra a estação que inicia a ferrovia e coloca a extensão dos trilhos em perspectiva, o espectador sabe até mesmo que o trem surgirá da esquerda para a direita. Outros recompensam o espectador com algumas pequenas surpresas, especialmente o quadro do sexto plano que mostra um mesmo trem cortando os limites do enquadramento quatro vezes.

Assistir De Bakersfield Para Mojave, assim como grande parte da filmografia de seu diretor, é presenciar um embate entre a natureza e o poder industrial do homem, mas também é ver um cineasta reinventando algumas de suas técnicas memoráveis. RR foi seu último filme de Benning gravado em película, muitas das limitações do formato analógico e da extensão do rolo de 16mm acabavam por ditar os seus regimes de temporalidade, ainda que em RR o cineasta já deixava esse regime por conta dos trens. De Bakersfield Para Mojave inicia com um plano de quase vinte minutos, algo somente possível com a tecnologia digital que ele adotou há mais de uma década atrás. Também por isso o filme é mais um passo em direção ao controle do cineasta sobre os elementos do ambiente, ele fala de uma vontade que está intimamente ligada à concepção do cinema como uma atividade tão moderna quanto a de uma locomotiva. O confronto entre o mundo natural e as atividades do homem não é visto só pelos trens, mas também é visto por dentro, pelo próprio ato de ver por um determinado ângulo e por um tempo específico.


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