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Desde o início de 2020, é visível o esforço que a Rede Globo está empregando no ato de reforçar o catálogo de produções originais de seu braço no universo das plataformas de streaming, o Globoplay. Antes, o serviço era assinado majoritariamente por pessoas que buscavam assistir a seriados norte-americanos e episódios das telenovelas correntes da emissora (além, claro, do pay-per-view do Big Brother Brasil). Hoje, o assinante encontra uma disponibilidade respeitável de clássicos do cinema brasileiro e uma seleção razoável de títulos estrangeiros. O que mais interessa aqui, no entanto, é essa produção de filmes e séries originais anteriormente mencionada. A maior emissora da América Latina está investindo pesado nisso.
Se logo no início da pandemia de COVID-19 o serviço disponibilizou “Em Nome de Deus”, minissérie documental sobre as denúncias envolvendo o suposto médium curador João de Deus, e um pouco mais adiante divulgou “Desalma”, série de ficção com um nível de produção aparentemente alto mesmo para os padrões do conteúdo televisivo do grupo Globo, é porque a intenção aqui é clara: competir com as cada vez mais numerosas plataformas digitais de peso, que disputam fervorosamente pela atenção e pelo bolso do cliente com uma vitrine de filmes e séries originais. Nesse sentido, “Doutor Castor”, que chegou ao Globoplay nesse início de 2021, é um grande triunfo, que faz com que os olhos de uma série de espectadores se voltem para o que a Globo está oferecendo – e pode vir a oferecer – nessa nova era em que precisa batalhar entre gigantes para conquistar o lugar de destaque que possui consolidado há décadas na televisão.
Com direção de Marco Antonio Araujo, “Doutor Castor” se propõe a ser um documentário que repassa a história recente da cidade do Rio de Janeiro através de eixos fundamentais para sua compreensão: o carnaval, o futebol e o jogo do bicho. Todos esses caminhos levam à emblemática figura de Castor de Andrade, que entre os anos 1960 e 1990 atuou como patrono da escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel, cartola do Bangu Atlético Clube e um dos maiores e mais influentes bicheiros do Rio (não necessariamente nessa ordem). Estruturalmente, a obra é dividida em quatro episódios de aproximadamente uma hora cada, com cada um deles seguindo um eixo mais ou menos definido (ainda que não se alienando das demais temáticas) e uma cronologia sucessiva de um episódio para o outro, mesmo que certas elipses por vezes sejam necessárias.
No que se refere a formato, portanto, não está tão distante do ainda recente “Em Nome de Deus”, pelo menos ao se analisar friamente. No entanto, entre os dois projetos já há uma substancial diferença, que não necessariamente diz respeito a exaltar qualitativamente um e diminuir o outro. Fato é que “Em Nome de Deus” não se propunha a ser um panorama sobre toda a história de João Teixeira de Faria e das relações abusivas de poder que mantinha sobre a cidade de Abadiânia (o que é, aliás, descrito com riqueza de detalhes pelo jornalista Chico Felitti no livro “A Casa: A História da Seita de João de Deus”, de 2020). Pelo contrário: construía seu fio condutor a partir das denúncias ao médium curador feitas no “Programa do Bial”, da própria Globo, e seguia o desenrolar dos eventos envolvendo a história a partir de então. “Doutor Castor” oferece justamente uma visão panorâmica sobre, digamos, seu “biografado” da qual “Em Nome de Deus” não usufrui ao escolher fechar seu escopo no que acontecera a partir das denúncias.
Ainda assim, “Doutor Castor” não cede à tentadora resolução de construir sua narrativa a partir de uma linearidade primária. É com alívio que o documentário flui sem seguir o padrão de abrir com o nascimento de seu personagem de destaque, o grosso da minutagem dedicado a uma inabalável rigidez cronológica e o desfecho no momento de sua morte. A minissérie já começa em uma montagem rápida que apresenta Castor de Andrade da melhor maneira possível: com um apanhado de imagens de arquivo, fragmentos de suas vastas aparições midiáticas, contrapostas com depoimentos assertivos que auxiliam na composição desse personagem logo nos primeiros minutos. Quem assiste ao documentário é lançado de cabeça no universo de Castor de Andrade, de onde terá dificuldade de escapar enquanto não finalizá-lo.
É justamente nesses dois elementos – as imagens de arquivo e as entrevistas – que “Doutor Castor” aposta de maneira mais significativa. No que se refere a estas, é feliz em colher depoimentos de um grupo variado, porém funcional de pessoas que ou conviveram com Castor de Andrade ou possuem notório conhecimento acerca de algum dos aspectos da vida do mesmo. Advogados que para ele trabalharam, juízas que o julgaram, jogadores que fizeram parte do elenco do Bangu durante seu período à frente do time, torcedores fanáticos da equipe que possuem memória e estudo enciclopédicos sobre o que acontecia dentro e fora de campo durante aqueles anos, intérpretes da escola de samba da Mocidade, jornalistas e pesquisadores figuram entre o rol de indivíduos que contribuem para que a rica história da vida do banqueiro do jogo do bicho seja construída verbalmente.
Ainda que as entrevistas sejam de qualidade ímpar e fundamentais para dar vida ao que acontecia por trás das câmeras, talvez o que salte aos olhos seja o uso maciço de gravações televisivas durante todos os quatro episódios. Disso, “Doutor Castor” em muito se beneficia de ser um projeto realizado por um braço da Rede Globo.
Por ser uma emissora do porte que é, surgida de um jornal de peso no Rio e desde cedo com um telejornalismo bem desenvolvido, esta pode dispor de seu próprio acervo riquíssimo de imagens de Castor de Andrade e de seus associados em diversos contextos e momentos de suas vidas, além de recortes de jornal (reproduzidos em tela através de animações estilizadas) e transmissões de desfiles de carnaval e jogos de futebol. Mesmo que se utilize por vezes de gravações caseiras, imagens de outros jornais e mesmo de outros canais de televisão (com maior destaque para fragmentos, espalhados por entre os episódios, de uma entrevista que Castor concedeu a Jô Soares quando este ainda estava no SBT), a predominância de imagens da Globo logo se faz visível. Em entrevistas dadas por Castor, tanto em seus momentos de glória quanto nos de derrota, nas falas amistosas ou nos discursos inflamados, o microfone com o logotipo da emissora está sempre presente em quadro, ao centro da tela.
Lógico que não há problema algum nisso. Em verdade, é algo extremamente positivo. É justamente por ser o que é que a Rede Globo tem a estrutura de viabilizar um documentário sobre Castor de Andrade dependendo majoritariamente de imagens da própria emissora (e tendo, entre os entrevistados, jornalistas que trabalham ou já trabalharam para ela). Objeto de uma história tão emblemática para o Rio de Janeiro, Castor, falecido na década de 1990, pode ter sua vida contada visualmente a um público de escala nacional graças a essa maior possibilidade de se unir um apanhado de gravações sobre a efígie de uma mesma rede de televisão.
Sendo um figura que buscava a vendagem de sua própria imagem à mídia sob as bandeiras do futebol e do carnaval para legitimá-la aos olhos do povo, Castor de Andrade foi também uma figura midiática. Pelo que é mostrado no documentário, parecia ter, com a mídia, uma relação de amor e ódio, notável inclusive em sua postura diante das câmeras. Nos momentos em que fala de maneira amistosa, segura, Castor é um showman com total domínio sobre a câmera, sustentando inclusive o hábito de posicionar-se frontalmente e falar com o olhar completamente fixado na lente. Faz discursos longos e cheios de sofismas, abusando do vocabulário distinto que possuía, no meio que vivia, por sua qualidade de bacharel de direito. Quando a situação é desfavorável, no entanto – como em entrevistas dadas em meio a processos que encaminhavam sua prisão, ou nas idas e vindas da cadeia – Castor olha muito para os lados e para baixo, dá respostas curtas, evasivas e se utiliza da repetição de máximas que sempre insistem em sua inocência, mesmo que o contrário esteja sendo efetivamente provado.
Ainda que o devido destaque seja dado às atividades de Castor de Andrade enquanto bicheiro, suposto mandante de homicídios e patrono da Mocidade Independente, é seu papel à frente do Bangu Atlético Clube que parece despertar maior interesse ao documentário, fazendo com que a trajetória do time durante os anos de Castor ocupe uma parcela considerável de todos os episódios. Isso é uma das grandes forças de “Doutor Castor”: fazer com que, independente do lugar de onde venha, o espectador se interesse e acompanhe com afinco um recorte da trajetória de um clube que hoje, mesmo no Rio de Janeiro, não possui a força que possuía nos anos em que era dirigido pelo contraventor. Com o rico dinheiro do bicho e elencos estelares, o time, hoje habitué da série D do Campeonato Brasileiro, era um nome expressivo do futebol nacional, jogando entre os grandes clubes e disputando, em seu apogeu, a Libertadores da América. As porções dos episódios dedicadas ao Bangu dão um bom espaço aos depoimentos de torcedores apaixonados, jornalistas esportivos e muitos ex-jogadores, figuras das de maior importância para “Doutor Castor” (sobretudo Dé Aranha, que logo desponta como um dos entrevistados mais carismáticos) e protagonizam alguns dos momentos mais emocionantes do rol de entrevistas.
Com toda a força no que se refere ao conteúdo, talvez o que enfraqueça em partes o documentário seja a estética e a linguagem, a começar pelos cenários dos depoimentos, sempre grandes espaços vazios e desfocados que parecem cenários de estúdio mesmo quando gravados ao ar livre. Para introduzir lugares fundamentais para a história de Castor, como os bairros de Bangu e Padre Miguel, no Rio de Janeiro, e Ilha Grande, local onde o contraventor esteve preso nos anos 1960, há um uso de drones – uma tendência do cinema documental e da televisão contemporâneos – que rapidamente se torna repetitivo, e que toma daqueles ambientes um certo distanciamento asséptico em prol de um rigor esteticamente agradável nos planos. Em certo momentos (principalmente no primeiro episódio), a produção vai à rua, captura o cotidiano dos bairros por onde Castor circulava, mostra o povo mascarado (em decorrência da pandemia de COVID-19, não do carnaval da Mocidade); em outros, mostra festejos de torcedores do Bangu nas ruas e em bares. No entanto, essas inserções por vezes parecem desconexas do restante da minissérie, assim como algumas imagens filmadas em estúdio que são utilizas uma série de vezes para representar signos do que está sendo comentado nos depoimentos: pequenas bolas girando em um globo de metal para representar o jogo do bicho; uma mesa, papéis, um óculos e o logotipo do Bangu na parede para indicar o escritório de Castor. Esses momentos, somados à trilha sonora que recorrentemente apela para uma dramaticidade excessiva muito marcada em suas notas, dão a “Doutor Castor” uma aparência momentânea de documentário true crime televisivo dos anos 2000, o que, se não é necessariamente algo negativo, definitivamente não dialoga em unidade com as gravações televisivas e os depoimentos em tela de maneira que vá além da redundância, da ilustração primária.
Se o subgênero true crime está em alta nas plataformas de streaming, tanto no formato da ficção quanto no do documentário, agora a Globo (e mais especificamente, a Globoplay) possui um representante de respeito para chamar de seu. O projeto se aproveita conscientemente dessa tendência – a abertura dos episódios não tenta disfarçar muito uma evocação à série Narcos, de José Padilha, que também vem à memória do espectador quando Castor é comparado a Pablo Escobar em depoimentos que aparecem em tela. No entanto, felizmente não se limita a ser um reflexo genérico do que está sendo estabelecido como moda pelas plataformas concorrentes. É um documentário magnético por seus próprios méritos, uma produção bem acabada que anima as expectativas acerca dos próximos projetos da Globoplay, uma minissérie extremamente brasileira e inequivocamente carioca.
“Doutor Castor” se aproveita de seu personagem principal, uma figura carismática e sedutora, para deixá-lo em tela durante o maior tempo possível: o feitiço se expande ao próprio documentário, fazendo com que o impulso seja o de assisti-lo continuamente, com o menor número possível de pausas, um mérito que precisa, claro, ser atribuído também – e principalmente – à eficiente montagem que dita o ritmo dos episódios. Os dois lados de Castor são sempre apresentados. Para uns, generoso, mão-aberta, companheiro, boêmio, apaixonado legitimamente pelo futebol e pelo carnaval, bicheiro que caiu nessa vida de maneira circunstancial, por influência de sua avó. Para outros, contraventor, criminoso, intimidador, rodeado de jagunços, orquestrador de atentados, fugitivo contumaz da lei, populista que se utilizava do Bangu e da Mocidade para tentar limpar sua imagem. Castor em momento algum é exaltado como um exemplo inocente do arquetípico malandro carioca, mas tampouco é demonizado unicamente como um monstro desumano. Cabe ao espectador decidir qual lado é predominante de acordo com seus próprios códigos morais. Difícil mesmo é resistir ao impulso de, ao terminar a minissérie, recorrer à internet na intenção de procurar uma camisa retrô do Bangu, ostentando, bordado no peito, o mascote do clube: o emblemático símbolo do castor.