Ajude este site a continuar gerando conteúdo de qualidade. Desative o AdBlock
“Duas Rainhas” conta a história de mulheres governando uma sociedade moldada por homens. Ao começar o filme com a execução de Mary Stuart (Saoirse Ronan), a diretora Josie Rourke elimina o fator surpresa e deixa claro que sua obra não é um thriller político sobre qual das duas, Mary ou Elizabeth (Margot Robbie), vai vencer essa disputa pelo poder, mas sim um estudo sociológico sobre porque uma delas termina o filme com a cabeça em cima do pescoço e a outra, não.
Um pouco de contexto histórico pode ajudar: Stuart foi a primeira Rainha da Escócia, enquanto Elizabeth I sucedeu o reinado curtíssimo – e tumultuado – de Mary Tudor. Se em pleno 2019 somos agraciados com o presidente da sigla presidencial falando que “política não é muito da mulher“, uma mulher no poder no século XVI era vista com sentimentos que variavam da desconfiança à repugnância. O conflito religioso envolvendo católicos e protestantes era o pavio curto deste tonel de pólvora.
Mary tinha um direito hereditário ao trono mais forte que o de Elizabeth. Os esforços da corte inglesa são exatamente para impedir que ela monte um caso capaz de reclamar esse direito, o que não apenas unificaria Inglaterra e Escócia, como também devolveria aos católicos o poder perdido na Reforma Anglicana. O Conselho de Elizabeth espera da Rainha da Inglaterra uma resposta firme à ameaça.
“Duas Rainhas” constrói suas protagonistas em oposição quase simétrica. Mary é tudo o que Elizabeth não é: jovem, bela, leve. Enquanto a Rainha da Escócia busca um marido, a Rainha da Inglaterra foge desse compromisso porque o homem que ama não está à altura de seu status social. Enquanto uma usa vestidos de cores vivas, a outra se enfurna em cores sóbrias e opacas. Uma tem a centelha de vida faiscando, a outra abdica cada vez mais da individualidade em nome do dever. Mary quer ser uma rainha, enquanto Elizabeth quer ser um rei.
O único momento em que Elizabeth usa cores saturadas é numa aparição pública (imagem inferior direita). A maquiagem também funciona como uma máscara, ocultando sua personalidade individual
É interessante notar como Rourke retrata a punição à feminilidade em seu filme. Elizabeth tem a Coroa porque adotou a religião de seu pai e abdicou de seus desejos pessoais em nome da estabilidade política. Mary, por manter o catolicismo de sua criação, é vítima de uma campanha difamatória do pastor John Knox (David Tennant). É a sua misericórdia em momentos-chave da contenda, buscando proteger a família, que acaba sendo a sua desgraça. Enquanto Mary se destaca nos quadros, Elizabeth se funde a eles. As principais confidentes de Mary são mulheres; Elizabeth está cercada por homens. A nenhuma das duas são concedidas as alegrias que desejavam.
O roteiro de Beau Willimon – “House of Cards” – merece elogios por conseguir tratar de conceitos como feminismo e sororidade durante o Período Elisabetano, mas peca exatamente no que fez seu grande trabalho tão marcante: o pano de fundo político. Não são raras as ocasiões em que um movimento numa corte precisa ser explicado pela outra para que o espectador o entenda. “Duas Rainhas” também tem um desequilíbrio entre o tempo de tela de cada rainha, com Elizabeth ficando longos períodos esquecida pela história, o que impede o trabalho brilhante de Margot Robbie de desabrochar como o de Saoirse Ronan, que tem condições para construir sua Mary de forma mais orgânica.
Mary usa inúmeros vestidos azuis ao longo de “Duas Rainhas”: cor associada à realeza, à serenidade e à razão, mas também à tristeza
Isso fica claro no esperado encontro das duas rainhas, ponto alto do filme. Ali, mais do que o confronto de duas aspirantes ao Trono, há o confronto de ideias sobre como uma mulher pode prosperar num mundo criado e até então governado por homens. O filme dá pistas sobre essa resposta ao longo de suas quase duas horas, mas nesse diálogo é categórico: não pode.