Plano Aberto

É eficaz apagar uma obra de arte?

Por Diego Quaglia

Apagar uma obra de arte é a mesma coisa que derrubar a estátua de um colonizador assassino? “Um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti–la” já dizia o filosofo irlandês Edmund Burke. O terrível assassinato de George Floyd e o movimento “Black Lives Matter” abriu a ferida do racismo sistêmico e estrutural na sociedade norte-americana também presente em toda parte do mundo, inclusive no Brasil. A reação ao racismo sempre presente, destruidor, assassino e ativo em nossas existências acabou ganhando o mainstream. O mundo da arte e do entretenimento. …E O Vento Levou, clássico do cinema norte–americano de 1939 acusado de romantizar a escravidão e o Sul racista dos Estados Unidos, foi retirado do streaming HBO Max, da Warner, o que gerou uma polêmica até que foi anunciada a sua volta com um debate sobre o racismo da obra, as suas problemáticas e o seu contexto como acontece com os seus desenhos animados. Porém, essa decisão causou uma onda de retiradas de obras problemáticas ou supostamente problemáticas de streamings. Um episódio de Community acusado de blackface; episódios de South Park, petição para que Fragmentado fosse retirado porque não retrata bem pessoas com personalidades múltiplas, e por aí vai. Ao meu ver, como eu escrevi no Twitter quando li essa última notícia, esse é o jeito mais irresponsável, burro, raso e inapropriado possível de se lidar com essas questões. 

Ao invés de discutir essas problemáticas, criticá–las e apontar a sua existência, estão fazendo o contrário: apagando a história, excluindo leituras dela e construindo um mundo de mentira, “perfeitinho” e inexistente. Esse mesmo pensamento foi compartilhado por cineastas pretos como Barry Jenkins e Spike Lee, que num papo que tiveram em tempos de isolamento social se mostram contra retirar obras de arte de catálogos afirmando que é muito melhor conversar sobre as problemáticas delas – lembrando que em Infiltrando na Klan e em outros de seus filmes, Spike já expõe um olhar crítico para …E O Vento Levou e o retrato do negro no audiovisual.

Um dos maiores problemas é que não estão fazendo uma leitura para ver se a obra de fato é realmente problemática ou a questão é parte de um contexto ou uma crítica. Estão apenas tirando para “não dar dano” em um momento onde questões importantes como essas estão sendo trazidas à tona e numa ação que acaba sendo só um ativismo corporativo vazio. Por exemplo, Trovão Tropical, de Ben Stiller é um filme que facilmente pode ser acusado por racista por fazer blackface.

Só que será que o que o filme de Stiller faz não é justamente para apontar o uso do blackface dentro da indústria norte–americana de forma crítica, de como Hollywood é indiferente para essas questões e mostrar o personagem de Robert Downey Jr. justamente como um ator babaca que acaba sendo totalmente egocêntrico ao fazer isso? Então, o humor do filme tem um viés totalmente crítico para tirar sarro do racista, na minha visão. Mas, claro, por uma onda de histeria que não pare para pensar sobre isso, ele pode ser colocado no mesmo saco de outros filmes e séries que realmente façam isso ou sejam acusados de fazer quando, na verdade, o contexto em que eles estão inseridos é bem mais complexo. 

Uma das grandes questões disso tudo parte do fato que existe uma subjetividade no olhar artístico. Por isso nunca é possível haver um consenso totalmente fechado. Como o meu amigo João Oliveira do “Café Pós–Créditos” citou no Twitter ao falar dessa questão: é para isso que existe o debate. Se você acha Fragmentado um filme irresponsável, …E O Vento Levou racista, que o Chang como elfo pode ser uma representação racista em Community e por aí vai, o debate está aí para a gente falar sobre isso e toda visão bem embasada é válida. Excluir a possibilidade de debate e apagar tudo isso não me parece uma alternativa válida. 

E a subjetividade é algo tão intrínseco que não existe e nem deve existir um consenso obrigatório sobre alguma obra mesmo que você faça parte de uma minoria social. Existem pessoas pretas que amam Infiltrando na Klan e pessoas pretas que se incomodam com o filme e vêm um lado pró–policial nele. Mulheres que criticaram a forma que A Vida Invisível aborda o sofrimento feminino num mundo machista e mulheres que amaram o filme e o defenderam em como ele constrói esse retrato. E por aí vai. Não existe consenso e não deve existir. Existem pessoas que acusaram filmes como Santiago (2007), Roma e por aí vai de terem uma visão elitista enquanto existem pessoas que vêm os filmes de forma totalmente contrária. Tiveram pessoas que viram o retrato dos temas sociais e de questões de saúde mental em Coringa como rasos e/ou problemáticas e pessoas que acharam eles válidos e interessadas. Existe uma “visão certa” ou “errada” no final das contas? Ou são duas visões totalmente válidas dependendo das pessoas e de como elas argumentem isso e respeitem o olhar do outro? E o mesmo autor é capaz de fazer um retrato que numa obra possa agradar e em outra obra possa te desagradar. Ou então ser capaz de ter ao mesmo tempo qualidades e defeitos. O Tarantino por exemplo é um cineasta que tem problemáticas raciais na sua carreira e fez um filme como Django Livre onde eu vejo o retrato da negritude e da escravidão muito problemática, mas por outro lado acho que as discussões raciais presentes em Os Oito Odiados e em Jackie Brown, dois dos seus filmes mais subestimados, são extremamente interessantes e válidas. Então de novo: quem está certo ou errado nesses casos todos? Não existe isso. São visões diferentes. Experiências diferentes. Olhares diferentes. Que podem variar dependendo do caso que for e tudo bem.

Pessoas pretas, mulheres, LGBTQ+ e por aí vai não são parte de uma caixinha onde somos obrigados a ter a mesma opinião e o mesmo pensamento, excluindo as nossas personalidades e opiniões próprias. Compartilhamos da mesma abertura e sensibilidade para olhar para essas questões, mas não existe uma obrigatoriedade. A discordância faz bem e só oferece uma troca ainda melhor para o debate.

E mesmo quando as obras são inegavelmente problemáticas em algum grau ou têm problemas desse tipo, quando a nossa alternativa é só ir para o lado de negar a existência delas ou apaga-las da humanidade, a verdade é que o que vemos é que não acaba mudando em absolutamente nada. Pelo contrário, só piora a situação. Faz com que a gente não discuta problemáticas dessas obras. É só perceber por exemplo como obras como O Nascimento de Uma Nação, de D.W. Griffith, foram sempre lembradas por cineastas negros como Spike Lee como um manifesto racista e que prega a supremacia branca.

Apagar o filme ou fazer com ele não seja visto, mesmo que ele seja altamente racista, seria colocar o problema para debaixo do tapete. Apagar o filme é apagar a história. Apagar uma história racista e de um filme que provou linchamentos. É estabelecer uma história e uma vida “perfeita” e higienizada onde problemas sociais não devem ser resolvidos e debatidos justamente para que possamos combate-los. O que acaba não mudando e só faz com que a gente não enfrente e discute problemáticas dela própria.

É como um amigo meu, o Gustavo Fiax do “Legião de Super Heróis”, notou com o seguinte exemplo: apagar acaba não tendo uso prático algum, porque quando a Warner removeu E O Vento Levou do catalogo da HBO Max, o filme se tornou o mais procurado em sites de torrent e de downloads. As pessoas não estavam com vontade de conhecer o filme e sim interessadas no fato de ele ser acusado de ser racista. Foi o efeito contrário. Além disso, isso tudo só fez com que um bando de reacionários e pessoas de fato racistas e acostumadas a criarem narrativas totalmente falsas e de pós–verdade, acharem uma brecha para se vitimarem e falarem que na verdade é “a esquerda, os progressistas, os antirracistas e os antifascistas” que fazem censura. Pior é perceber como a postura de grandes streamings e estúdios é apenas oportunista e não realmente preocupada. Não é uma resposta, é um desserviço. Justamente porque muitas dessas empresas criam obras que se posam com um viés “progressista” por interesse financeiro, mas só reforçam preconceitos de forma mais sutil e ainda mais falsa.

Exemplos não faltam, como por exemplo na mais recente versão de Aladdin do Guy Ritchie, feita pra a Disney, onde existe uma intenção de empoderar Jasmine e cria uma outra personagem feminina para ela interagir. Ação totalmente justa, correta e válida, né? Com certeza. Só que na execução o filme é tão medíocre que faz com que Jasmine e a sua amiga só falem sobre… HOMENS! Quando estão sozinhas, conversam sobre interesse amoroso pelo protagonista e por seu parceiro. Como se fosse o único assunto que duas mulheres pudessem ter. Fica claro que o tal “ativismo” do filme não passa de um “ativismo” corporativo e falso que é totalmente contraditório, vazio e que se dilui porque não ressoa em nada. E existem milhões desses exemplos nos blockbusters modernos. Isso só higieniza uma obra de arte enquanto não oferece ou desenvolve nada de realmente positivo no lugar. É uma ideia falsa de melhora.

Até porque a arte é cheia dessas grandes e pequenas complexidades que a tornam ao mesmo tempo tão única, especial, difícil e mesmo impossível de oferecer um pensamento do que é “certo” e “errado” numa obra. Um filme, uma peça, um livro e por aí vai não precisa ser obrigatoriamente apenas “problemática” ou “unproblemetic”, ela pode habitar as duas visões e ao mesmo tempo por diferentes motivos. 

A forma que Spike Lee olha para o feminino e a vida de uma mulher preta no ótimo Ela Quer Tudo hoje pode soar datada e envelhecida em muitos aspectos, e de fato é, e não existe problema em criticá–lo por isso ou apontar que ainda é uma visão masculina sobre o tema. Porém, ao mesmo tempo, o filme continua revolucionário e vanguardista por olhar para essas questões quando isso nem era comum, e por desenvolver um elo de empatia em como traz à tona essas questões que segue imortal até os dias de hoje.  Além dos seus problemas terem de ser vistos como fruto do contexto de uma época – o que jamais impede que eles continuem sendo apontados – é bom perceber que arte é contradição. É fugir de respostas fáceis. Cada dia mais, fico mais feliz em aprender isso. Crítica e elogio podem habitar o mesmo olhar tanto no gosto e no desgosto de quem vê sem se excluírem. 

Um dos maiores diretores do cinema norte–americano, se não o maior, John Ford, pode ser visto hoje em dia de forma mais crítica do que nunca. O consolidador do faroeste: estamos falando de um gênero que no seu estado mais clássico – que muitas vezes os diretores exploraram – validavam um olhar colonialista, ufanista, racista contra indígenas e machista. Ao mesmo tempo o próprio Ford, sempre inteligente independente dos seus piores defeitos na sua inegável genialidade, era capaz de confrontar as problemáticas do seu próprio gênero e do seu próprio cinema criando filmes como Audazes e Malditos (de 1960) onde a temática do racismo é explorada com uma sinceridade e empatia surpreendentes para a época e para o gênero.

Ou então o próprio Rastros de Ódio (1956), que possui tanto problemáticas claras e inegáveis de se passar num momento onde atores brancos faziam índios e esses personagens eram vistos como “vilões assassinos”, também constrói o seu personagem central com muito cuidado observando o quanto o racismo, o ódio e a intolerância do Ethan de John Wayne fazem parte de uma vertente onde o preconceito só leva a autodestruição, desconstruindo esse arquétipo do “herói branco”. Chamado de ufanista e conservador, o que de fato muitas vezes foi em sua vida e obra e outras vezes não, Ford era capaz de criar obras–primas, como a adaptação de As Vinhas da Ira (1940), onde confronta a perversidade do estado capitalista, ou então O Homem Que Matou O Facínora, onde olha para trás do seu próprio gênero tão costumeiro desconstruindo arquétipos dele e o próprio Estados Unidos.

Então no final das contas o cinema de Ford é “bonzinho” ou “mauzinho”? Ambos? Nenhum deles? Seus méritos e problemáticas seguirão imortais e ele pode ser olhado tanto de um lado quanto para o outro. Claro que dependendo da pessoa os méritos ou problemáticas podem ressoar mais fortes ou mais fracos e tudo bem. Ninguém é obrigado a relevar ou condenar por motivo nenhum. E é extremamente possível por outro lado com qualquer artista ter um olhar para as duas coisas ao mesmo tempo. Como já dizia Nelson Rodrigues, “toda unanimidade é burra”, e existe uma diversidade de visões para se ter de qualquer obra ou artista. Mas não acho justo pessoalmente julgar seus filmes como se as problemáticas – que existem e que devem ser faladas – definissem unicamente ou seu cinema ou o seu gênero. Porque no todo a arte está longe de maniqueísmos e habita um lugar de visões que acabam sendo mais amplas e menos exatas do que se faz parecer.

Saindo do faroeste e indo para o cinema adolescente norte–americano: o cineasta John Hughes recentemente foi alvo de alguns debates na internet sobre a sua obra. Se ela envelheceu mal ou não. Mesmo sendo na minha opinião um dos maiores gênios do cinema norte–americano oitentista. Em 2020 é mais fácil perceber as limitações do próprio Hughes enquanto humano e artista. Um jovem adolescente isolado e que sofreu bullying, Hughes cresceu e ofereceu um olhar de extrema generosidade para o jovem e seus conflitos por conta de sua própria vida. Porém Hughes continuava um homem branco de meia–idade dos anos 80 capaz de genialidades, inteligências, vanguardismos e de reproduzir preconceitos em sua obra. Não é difícil notar hoje a misoginia no relacionamento de Bender e Claire no excelente Clube dos Cinco ou então a patética e triste “transformação” de Allison no final reforçando o clichê batido de “mudança da protagonista rejeitada” (que Hughes não inventou ou foi exclusivo, mas se utilizou). É excelente que hoje possamos ter um olhar crítico sobre essas coisas e que possamos falar disso. E temos que falar disso. As qualidades de uma obra não as blindam de envelhecer mal em algumas questões e nem impedem que seja apontado visões críticas ou de problematização sobre ela (como a própria Molly Ringwald, figura sempre presente na obra do diretor, inteligentemente relatou num artigo que escreveu anos mais tarde). 

Mas ao mesmo tempo – como a própria Ringwald disse no mesmo artigo – esses defeitos e essas críticas não invalidam o brilho, a sensibilidade, a importância e a sinceridade de todos os méritos que Clube dos Cinco possui e nem fazem com que ele se torne algo “menor” ou “cancelado”. E é válido pensar como os seus erros são frutos também do contexto de um tempo e da lógica dele o que não os justifica, diminui, apaga ou desculpa jamais, mas explica isso a algo além da malicia e não faz com que sejamos anacrônicos ou então maniqueístas em como ver essas obras. Não podemos excluir o olhar crítico da problemática de uma obra porque ela é do passado, mas também não podemos julgar ela como se o pensamento de lá fosse o mesmo de hoje. A arte é complexa e muitas vezes passando longe do maniqueísmo simplista, podendo abarcar extremas contradições entre erros e acertos, e tanto o olhar crítico quanto o olhar elogioso.

 

Hughes continua sendo a figura que viu o jovem de igual para igual e trouxe temas como como depressão, abuso familiar, suicídio, armas na escola, a inadequação escolar, ansiedade, o descaso/desprezo escolar da instituição para o jovem, a pressão social e familiar, bullying, julgamentos e isolamento de forma muito sincera para dentro do cinema mainstream e pop norte–americano. O Ferris Bueller da sua obra–prima Curtindo A Vida Adoidado pode ser visto como um babaca hoje em dia, e de fato ele é um, mas também é um amigo verdadeiramente preocupado, alguém extremamente apaixonado e alguém que enxerga a vida com uma liberdade admirável. Ferris tem qualidades e defeitos, como qualquer pessoa e qualquer adolescente. Ser maniqueísta ao ponto de rejeitar esse fato não faz a gente comentar o mesmo de alguém que faz um tweet dizendo que as duas protagonistas de Ladybird e The Edge of Seventeen são “insuportáveis e cheias de white people problems” sendo que… Elas são duas adolescentes brancas então isso é absolutamente esperado e real? Vamos encarar a realidade ou só colocar ela para debaixo do tapete vivendo num mundo idealizado só porque não gostamos de olhar para ela ou ela faz não faz de uma vivencia que julgamos de forma arrogante não ser válida?  

Tanto esses erros de Hughes são válidos de serem argumentados e falados, mas também não apagam que sem os seus filmes não teríamos filmes adolescentes como os já citados Ladybird e The Edge of Seventeen, mas também Eight Grade, Fora de Série, O Diário de uma Adolescente, Com Amor, Simon e Um Deslize Perigoso que se dialogam com conflitos abertos da nossa contemporaneidade de forma positiva, inclusive quando fala sobre minorias. Os filmes estão aí para tanto serem elogiados quanto criticados (uns seguem filmaços, outros parecem mais frágeis com o tempo). Ou para que se faça as duas coisas, como acho que deve ser feito. Ou não. Existem incontáveis possibilidades. Mas a exclusão ou a negação da existência deles não é uma delas. 

Claro, é um problema imenso achar que a normalização do Sul racista em … E O Vento Levou não é um problema gigante e que o filme é apenas “um dos grandes filmes do cinema”. Essa validação do olhar branco – e exclusivamente branco – sempre é um problema. Porém esse problema não é resolvido apagando e ignorando o filme. É resolvido debatendo o racismo dentro do filme, informando sobre ele, o seu contexto, a sua história e tendo total noção dos vários lados daquela obra. A decisão da HBO Max de trazer o filme de volta com informações e debates sobre o racismo assim como o que eles fazem com as animações é o correto. Não podemos ignorar a problemática nem de uma forma nem de outra.

E também é bom dizer que amar … E O Vento Levou e achar ele um grande filme, não te faz um racista automaticamente por mágica. Eu mesmo adoro o filme e continuo adorando mas percebo ao mesmo tempo o racismo dentro dele que deve ser debatido e criticado. O problema é achar que a validação de um filme enquanto obra de arte (que é justa) e a época não o tornam criticável quando observamos seus problemas ou que os faz automaticamente normalizados. O problema também é achar que a época e o contexto também não representam algo dentro desse debate ou então excluir qualquer outra visão ou apreciação do filme. 

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