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Programa Novas Películas Espanholas

Programa Novas Películas Espanholas

Entre viagens e tintas

Nicholas Correa - 23 de julho de 2021

A quinta edição do Festival Ecrã trouxe um programa especial, Novas Películas Espanholas, que apresenta o trabalho de três cineastas com preocupações ao mesmo tempo semelhantes e singulares, Elena Duque, Valentina Alvarado Matos e Jorge-Suárez Quiñones Rivas. O programa contempla seis obras, todas feitas em celuloide, e divide dois filmes por cineasta. Com os filmes dispostos no conjunto de uma só sessão, alguns elos formais e estéticos entre eles ficam mais evidentes. Todos os seis filmes não só partilham do apreço pela materialidade do formato analógico, mas como também parecem nutrir de uma preocupação com o cinema como espaço do sujeito, da subjetividade lírica do artista, e sua relação com o mundo vivo e pulsante.

Os filmes de Elena Duque, que abrem o programa, Valdediós (2019) e Colección Privada (2020), se aproximam dos objetos de maneiras bem particulares. O primeiro, um curta com menos de quatro minutos (e também o único filme sonoro do programa), assume frontalmente a natureza “plana” da imagem, seu caráter de superfície palpável e maleável. O título do filme abre uma fratura na imagem com um rasgo em uma folha impressa. A câmera de Duque se detém na vegetação da região das Astúrias e nas construções antigas de um mosteiro. O filme constantemente alterna entre a imagem impressa, pré-existente, e o registro da câmera em uma montagem rítmica e quase lúdica. Porém dentro dessas imagens da região, surgem interferências da cineasta sobre a imagem física, pinceladas surgem e invadem o regime de imagens, às vezes dando curiosos contornos às figuras que a cineasta registrou. O lírico e o lúdico se fundem com a dimensão do registro automático.

Em Colección Privada parece haver um novo desdobramento, uma complexificação dessas premissas. A presença dos objetos assume a dianteira no jogo de imagens. No filme, Duque apresenta uma coleção de pequenos objetos (rochas raras, cartões postais, pequenos bonecos, conchas, e entre várias outras coisas diminutas) e os destaca na tela colocando-os sobre um fundo preto. A montagem intercala as imagens destes objetos com vídeos pessoais de Duque (ainda vistos pela mediação analógica) e com um clipe pequeno de uma animação que mostra um personagem em formato de bule. O clipe de animação surge como uma das metáforas principais para o fascínio de Duque com os objetos, com suas propriedades do mundo real. Parece um fascínio pelo mundo externo, com toda a sua miríade de objetos, como um espaço “mágico”.

É o fascínio pelo mundo enquanto uma dimensão que pulsa, que é viva além das suas projeções. Mais tarde em Colección Privada, Duque “anima” peças de roupa em um varal, uma operação que, assim como as interferências na superfície da imagem com tinta, vem como a expressão do desejo em se integrar ao movimento das coisas, se integrar à dimensão real no que ela tem de mais fascinante. Os objetos que Duque coloca em cena dizem respeito não só ao mundo exterior, mas também dela mesma, a coleção de souvenirs encarna seus traços característicos. A cineasta se realiza por meio de sua visão e de seus objetos, ela filma sua marca no mundo.

A cineasta Valentina Alvarado Matos também partilha de interesses similares e, de fato, é possível falar que o ponto de partida de seu curta El Mar Peinó a la Orilla (2019) é o ponto que em que Colección Privada se encerra, a vista para o mar com os contornos de tinta (a semelhança fica mais evidente graças ao excelente trabalho curatorial que dispôs os dois filmes lado a lado durante o programa). O título do filme de Matos já lança a questão dos limites naturais da percepção com os limites da própria natureza, o mar penteia a costa e a cineasta contorna a imagem com a tinta. 

No caso de Matos, é possível falar que sua preocupação com a tinta e a tela vem principalmente de uma impossibilidade de dar ao mundo suas dimensões apropriadas, algo que Duque também já apontava com as projeções cartográficas em Colección Privada. A projeção, e o cinema por extensão, é o espaço possível para o artista que, por sua vez, dedica seus empreendimentos a superá-lo; as cineastas apontam para o mundo que existe além de suas imagens. Matos evidencia ainda mais essa impossibilidade ao fazer um filme, Propiedades de una Esfera Paralela (2020), com dois quadros lado a lado, dois sistemas de imagens derivados do mesmo mundo. Com dois fluxos de imagem correndo lado a lado, por vezes vemos semelhanças, com um quadro referenciando o outro, e por outras também vemos dissociações, contrastes.

A segunda metade do programa fica por conta de dois filmes de Jorge-Suárez Quiñones Rivas, Twelve Seasonal Films (2020) e Meihōdō (2020). Estes filmes, ainda que também tomam as limitações materiais do celuloide como ponto de partida, já se diferenciam substancialmente dos filmes de Duque e Matos. As intervenções com tinta sobre superfícies imagéticas que vimos nos trabalhos anteriores de Duque e Matos não estão presentes no trabalho de Rivas. Nos dois filmes do diretor, o aspecto físico da mídia é determinante no que concerne aos rolos de filme, a limitação do quanto que o dispositivo da câmera consegue gravar. Seus filmes são editados através de mecanismos da sua própria câmera Super-8 e são gravados em uma velocidade de 18 frames por segundo.

O primeiro filme de Rivas no programa parece ser remanescente da tradição de filmes-diários. Twelve Seasonal Films é composto, como diz o título, de doze fragmentos gravados ao longo de um ano (essa antologia é também a obra mais longa do programa, com quarenta minutos de duração). Nesses pequenos filmes acompanhamos a trajetória do próprio diretor pelo interior da Espanha, por um trem em uma ferrovia russa e principalmente pelo Japão. Partilhamos da experiência do cineasta à medida que ele faz da câmera uma extensão de seu corpo móvel. O enfoque de Rivas sobre o ciclo das estações deixa evidente sua preocupação com a dimensão externa ao sujeito, à percepção de seu dispositivo. Ao invés de marcações de tinta jogando com um mundo que é apreensível apenas até um certo ponto, vemos um cineasta se afirmando dentro do registro fílmico através de seu próprio movimento dentro das paisagens vivas. Com suas limitações, paradoxalmente, Rivas se aproxima do mundo não só naquilo que ele tem de mais espontâneo, desordenado e incontrolável, mas também no que ele tem de previsível, constante e cíclico. Com isso, cada momento mundano e corriqueiro que vemos no filme é carregado de inquietação metafísica.

A proposta de Rivas Twelve Seasonal Films ganha uma nova inflexão em Meihōdō. Aqui, se mantém a atenção sobre os ciclos da natureza, mas agora os acontecimentos registrados por sua câmera abrangem o espaço de um dia. No filme, acompanhamos um ritual em um templo xintoísta, com o mesmo processo de edição dentro da câmera. Alguns dos momentos mais interessantes em Meihōdō fornecem os maiores exemplos da dicotomia entre o que é incidental e o que é controlado. O ritual xintoísta oferece ações já encenadas, coreografadas, que possuem um rigor próprio e estas, por sua vez, contrastam com um mundo mais flexível. Em um momento particularmente marcante, vemos no templo uma praticante executando os movimentos ritualizados de maneira séria e rígida, porém, logo em seguida ela desfaz sua postura solene e se permite abrir um sorriso.

Essa dicotomia do que o sujeito consegue imprimir e impor com aquilo que está fora de seus domínios diz respeito ao trabalho dos três cineastas. Vistos em conjunto, vemos que Duque, Matos e Rivas fazem de suas viagens uma redescoberta de suas dimensões internas. A descoberta do espaço de ação e percepção do artista se faz em função dos fenômenos que o cercam e vice-versa. O cinema enquanto espaço da subjetividade, ciente dessas formas, de suas potencialidades e de seus limites, coloca em questão os espaços de nossa experiência. As paisagens, os sujeitos e os objetos ganham contornos reconhecíveis por estatutos frágeis da imagem, porém com cada pincelada atestando o desejo do cineasta de se integrar à mística do mundo.


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