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Esquadrão Suicida e a violência contra a mulher

Esquadrão Suicida e a violência contra a mulher

Gustavo Pereira - 11 de agosto de 2016

O texto de hoje, como o título indica, será sobre Esquadrão Suicida, novo filme da DC/Warner. Já viu? Leu a crítica do Matheus? Xingou ele bastante? Agora é a minha vez.

O hype negativo contaminou a minha experiência na sala de cinema? Honestamente, não. Sem perder muito tempo em um assunto que já foi tratado fervorosamente na semana passada, o filme é indiscutivelmente ruim. Os motivos que podem explicar um eventual sucesso de bilheteria renderiam não apenas mais um texto neste blog, mas uma tese de mestrado. Costumo esvaziar a mente de tudo o que sei sobre um filme antes de efetivamente assistí-lo, de forma a encará-lo sem ideias preestabelecidas, com o coração aberto para gostar do que vier. Esquadrão Suicida consegue, entretanto, sistematicamente me tirar da imersão, ao questionar personagens mal desenvolvidos, trama frágil, montagem desconfortável e direção preguiçosa. Para mais detalhes, leia a crítica do Matheus. Concordo com 95% dela, exceto pelo fato de que Margot Robbie me convenceu como Harley Quinn. Se algo pode ser salvo em Esquadrão Suicida, é a Harley Quinn de Margot Robbie. E é exatamente sobre a forma como o filme a “desenvolve” que vou tratar neste texto.

Não sei se vale o ingresso, mas não quis me matar durante suas cenas

Não sei se vale o ingresso, mas não quis me matar durante suas cenas

A Arlequina é, de fato, um personagem espinhoso para se trabalhar. Caso sui generis, não nasceu nos quadrinhos, mas na clássica Batman: The Animated Series, veiculada entre 1992 e 1995. Uma psiquiatra que acaba enlouquecendo durante as sessões de terapia do Coringa no Asilo Arkham e se torna codependente emocional dele, passando a viver sua vida em função dos caprichos do Príncipe Palhaço do Crime, sendo vítima constante de abusos. Como o assunto era muito pesado para uma série voltada ao público infantil, Arlequina era apenas “a namorada do Coringa”.

E assim fomos apresentados à doutora Harleen Frances Quinzel

E assim fomos apresentados à doutora Harleen Frances Quinzel

Começamos mal.

A série de games Arkham trouxe uma Arlequina ainda mais sexualizada do que a original, consequência do público ao qual o produto se dirige. Não entendo como narrativas transmídia transformam abuso em romance, obliteram o passado de uma personagem e lhe dão como única função de enredo “ser sexy”. Mas posso aceitar que “o público infantil não compreenda de forma plena o tema”, “games sejam mercados de nicho”, “o alcance seja limitado”. Não entendo, mas aceito que estes argumentos são usados a torto e a direito, bastam por si e fecham qualquer porta para debate mais amplo e qualificado.

Foi uma questão de tempo para a Arlequina se transformar num fetiche ambulante (frame de Arkham Knight)

Foi uma questão de tempo para a Arlequina se transformar num fetiche ambulante (frame de Arkham Knight)

Nenhum destes argumentos cabe para Esquadrão Suicida.

A sensação desagradável de déjà vu quando Amanda Waller diz “ela pensou que o estava curando, mas estava se apaixonando por ele” e o flashback da tortura com eletrochoque ao som de Bad Girl já demonstram que, para o diretor, não existe nenhuma carga dramática no passado de Harley. Ela se “transformou” – metafórica e literalmente, vide a cena do tanque de ácido – em alguém “legal” (procure por “chill girl” no Google para mais detalhes desse arquétipo).

Por méritos exclusivos de Margot Robbie – ótima atriz, diga-se de passagem – a personagem consegue desenvolver alguma profundidade nesta questão, que logo na sequência é mitigado, transformado em piada. Quando Harley relembra do diálogo “você viveria por mim?” com o Coringa, pergunta ao Pistoleiro se ele já havia amado alguém. Com a resposta negativa, vira os olhos nas órbitas, muxoxa “outro psicopata antissocial” e segue em frente. Risadas na audiência, música sobe, todos em paz: mais um pouco e teríamos de tratar das sequelas de uma violação, física e emocional.

David Ayer, diretor mediano, tem a visão mediana de que uma mulher pode servir como alívio cômico pela forma que desperta a libido nos homens, como na cena em que ela troca de roupa na base militar. Esta cena está presente no trailer abaixo, a partir de 0:41.

Em sua primeira menção, estabelece-se que Arlequina é mentalmente instável – como “algo legal”, mas está lá – e isso não impede que ela seja vista como alguém sexualmente viável. Neste momento, faço uma pergunta a quem lê este texto: você é capaz de se sentir sexualmente atraído por alguém que não desfrute plenamente de suas faculdades mentais? Se a resposta for “sim”, procure uma ponte bem alta e pule dela.

Se for “não”, me permita fazer outra pergunta: então, por que você vê isso no cinema e considera como algo normal?

Margot Robbie claramente não considera isso normal e tentou, limitada pelo roteiro pueril que lhe foi entregue, dar uma carga dramática à personagem: a perda da autonomia, o horror constante, os escapismos, a codependência emocional… Violência e abuso não são artifícios de ficção, mas problemas reais que assolam mulheres de todas as classes, cores e credos diariamente. Margot também faz lobby por um filme que conte em detalhes a relação de Harley com o Coringa. Se vier a acontecer, provavelmente será ela a diretora do longa.

Tomara que aconteça. Que uma mulher fale sobre abuso no cinema blockbuster, pois está claro que nenhum homem sentado na cadeira de diretor em Hollywood tem competência – e interesse – para tanto.

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