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Garotas do ABC (2003)

Garotas do ABC (2003)

Classe operária de carne e osso

Wallace Andrioli - 7 de julho de 2020

Há um componente subversivo no próprio princípio de “Garotas do ABC” (2003). Ao localizar o enredo no ABC Paulista e colocar operárias como protagonistas, Carlos Reichenbach abre diálogo com todo um conjunto de filmes que, realizados entre o final dos anos 1970 e início dos 1980, se engajaram no registro do nascente “novo sindicalismo” brasileiro, nessa mesma região. “Braços Cruzados, Máquinas Paradas” (1979), de Roberto Gervitz e Sérgio Toledo, “Greve!” (1979), de João Batista de Andrade, “Linha de Montagem” (1982), de Renato Tapajós, “ABC da Greve” (1990) e “Eles Não Usam Black-Tie” (1981), de Leon Hirszman, aderiram aos valores e bandeiras desse movimento, tomando-o como uma força de combate à ditadura militar, naquele momento ainda vigente, e também renovaram a esperança nos trabalhadores como agentes de transformação social, adormecida no cinema de esquerda desde o golpe de 1964.

“Garotas do ABC” está localizado no ponto de chegada desse processo. Seu momento de produção e lançamento foi marcado pela vitória eleitoral e início de governo de Lula e do Partido dos Trabalhadores (PT) – o primeiro, personagem central do “novo sindicalismo”, e o segundo, seu fruto direto. O filme inclusive começa com um letreiro que faz referência à presença do ex-líder sindical na presidência da República. Reichenbach impregna “Garotas do ABC” de um otimismo que parece derivar diretamente dessa situação. Ele constrói o enredo a partir do embate entre as operárias e o grupo supremacista branco ao qual pertence o namorado da protagonista Aurélia (Michelle Valle), que é negra. Quando esse conflito se concretiza, os últimos se portam pateticamente e são facilmente derrotados. E pouco depois o encerramento do filme se dá com o início de um novo relacionamento inter-racial de Aurélia com um trabalhador de origem nipônica, cena sucedida pela apresentação de “Olhos coloridos” (hino à miscigenação e contra o preconceito) num baile popular. Brasil, um país de todos.

Mas Reichenbach nunca foi um cineasta de adesão fácil a visões totalizantes ou hegemônicas da sociedade brasileira. Aqui, apesar da euforia pelo momento do país, ele consegue diagnosticar uma espécie de mal-estar subterrâneo que ecoa no presente. Por mais que “Garotas do ABC” carregue nas tintas do ridículo ao lidar com personagens de extrema-direita, o filme dedica uma atenção a eles que não é gratuita. À exceção do líder do grupo, interpretado por Selton Mello, os demais são homens pobres, fodidos. O espaço que frequentam, um bar decadente, é cenário típico dos filmes do diretor, habitat das figuras boçais que tanto aprazem ao cinema marginal. Há, portanto, interesse real de Reichenbach nesses supremacistas toscos e patéticos.

Mais recentemente, Fellipe Gamarano Barbosa fez análise semelhante no irregular “Domingo” (2018), identificando a presença de forças reacionárias destrutivas, mas adormecidas, no momento da ascensão do PT ao poder. Essa, no entanto, é uma leitura retrospectiva, construída em meio à emergência irresistível do bolsonarismo – logo, relativamente fácil de ser feita. Reichenbach conseguiu perceber a existência dessa extrema-direita boçal enraizada nos marginais sociais no auge da euforia lulista.

Chama atenção também em “Garotas do ABC” o olhar do diretor para o universo operário. Não há idealização, tampouco exploração sensacionalista da privação material. A protagonista é uma mulher jovem, negra, verdadeiramente apaixonada por um supremacista branco escroto e fã de Arnold Schwarzenegger. Reichenbach incorpora à narrativa os muitos e por vezes aparentemente contraditórios elementos que compõem a vida popular. É visível o tesão que sente por esses personagens, por suas relações, gostos, manias. O diretor delinearia isso com maior precisão alguns anos depois, no magnífico “Falsa Loura” (2007), a ponto de interromper a trama para introduzir, sem fazer troça, o número musical de estética precária de um cantor romântico idolatrado pela protagonista.

Mas “Garotas do ABC” já é uma demonstração cabal da familiaridade com que Reichenbach trata os despossuídos. As várias cenas ambientadas no bar dos reacionários, em que a figura decrépita de uma velha mulher alcoólatra ganha destaque, aponta nesse sentido. O que é confirmado pela entrada da câmera nos espaços da fábrica têxtil onde a protagonista trabalha. No filme-ensaio “Arbeiter Verlassen die Fabrik” (1995), Harun Farocki analisa a reiterada opção dos filmes, ao longo da história do cinema, por repetir (mesmo que relendo) a mise-en-scène de Louis Lumière em “A Saída dos Operários da Fábrica” (1895): câmera posicionada do lado de fora da fábrica, capturando os operários que deixam, em conjunto, o local de trabalho; eles formam, nessas muitas tomadas semelhantes, uma massa passível de concretizar visualmente a categoria “proletariado”.

Carlos Reichenbach, por sua vez, não quer categorizar nada. Suas trabalhadoras são de carne e osso, brigam entre si, comem, amam, odeiam, fodem. Ele não tem medo de adentrar o espaço da fábrica. Filma essas mulheres em relação direta com o maquinário e socializando no refeitório numa vibração impressionante. A classe operária de “Garotas do ABC” (e também de “Falsa Loura”) pulsa, pois está viva em toda sua complexidade.

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