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Segundo Kierkegaard, a ansiedade/angústia é a principal ferramenta para o desenvolvimento do ser. No escuro da incerteza e nas mil ramificações possíveis de uma resolução reside a ansiedade. Para o filósofo dinamarquês, viver é ansiedade, pois estagnar-se é uma barreira para a subjetividade definitiva. No entanto, a plenitude da existência só ocorre quando aceitamos a nossa finitude na Terra e abraçamos o infinito através da fé em Deus. Temer e não aceitar a morte enquanto destino absoluto é viver em desespero, se estagnar, a maior doença humana. Para superar o desespero e atingir a individualidade plena, o ser precisa passar por três estágios: o estético, o ético e o religioso. Somente no estado final que o homem é definitivamente um indivíduo, pois ao atribuir sua existência terrena a Deus, o ser humano se liberta do medo da morte e se torna capaz de desfrutar a vida em sua plenitude.
Atualmente, quase dois séculos após a morte do autor, falar de ansiedade se tornou um clichê, o século XXI é a era da ansiedade. Desde o mito do bug do milênio até a superexposição de pessoas em redes sociais o planeta respira esta condição. Vivemos a era da pós-verdade, onde real e ficção se misturam e narrativas se sobrepõem aos fatos. Com isso, cultuar artistas e figuras facilmente relacionáveis se tornou o modus operandi da sociedade contemporânea, pois identificação e idolatria são sinônimos de pertencimento.
Dentre estas figuras do meio artístico, uma pessoa se destaca: Kanye West. Errático e controverso, West pautou sua carreira em torno de seu ego e suas figuras pública e privada são praticamente indissociáveis. Sua ansiedade kierkegaardiana é representada pela sua impulsividade. West fala o que pensa, independente das consequências, fazendo com que ele seja amado e odiado por muitos; esta inquietude é evidente em suas composições que se reinventaram ao longo de sua carreira. West testa os limites de suas músicas para se expressar enquanto artista e se manter relevante. Esta ebulição constante somada a sua personalidade difusa manteve West nos holofotes, tornando-o um dos artistas mais influentes do século.
Analisando cronologicamente sua discografia, podemos perceber que o artista segue, através de meios próprios, a busca pela individualidade plena descrita nos dizeres de Kierkegaard. Dito isso, vale frisar que West, ao longo de seus álbuns, sempre buscou uma pessoalidade em suas narrativas e, partindo de uma perspectiva egóica, tocou em assuntos estéticos, morais e até mesmo religiosos. Contudo, mesmo que as temáticas dos três estágios kierkegaardianos estejam diluídas em suas músicas, Kanye possui uma linearidade clara em seus discos que nos permitem perceber a prevalência de um estágio sobre o outro. Portanto, vamos à discografia.
O Estágio estético de Kanye: a ânsia em se tornar imortal
O estágio estético de Kierkegaard trabalha no campo dos prazeres, é nele que o homem se prende às questões mundanas, buscando a satisfação pessoal. Com isso, boa parte da discografia de West se concentra neste campo, que pode ser dividido em três fases: a graduação, a ressaca e a deificação de Kanye. De The College Dropout a Yeezus, sempre de maneira autocentrada, Kanye utiliza dos conceitos de ansiedade do filósofo dinamarquês para não se manter estático, modificando constantemente sua forma de produção, abraçando uma narrativa que se desenvolve até sua autodenominação como um novo Deus da era midiática. Sua megalomania egocêntrica vai de encontro ao conceito de desespero em Kierkegaard, afinal Kanye, ao se colocar como uma divindade, demonstra um inconformismo com a finitude terrena e tenta se imortalizar de alguma forma perante o mundo. Pois bem, falemos separadamente de cada fase de sua vida.
A Graduação: a busca pelo topo das paradas
The College Dropout já demonstra sua tentativa de romper com o status quo. Lançado em 2004, o álbum se contrapõe ao gangsta rap que prevalecia como vertente mais popular do hip-hop. Kanye troca a ostentação pela irreverência para questionar a submissão de rappers como 50 Cent e DMX às exigências das grandes gravadoras de vender um estilo de vida ostensivo e violento. Kanye quer se apreciar e a sua mensagem é empoderadora. Ao falar de experiências pessoais e familiares, West valoriza o comum e prova que não é preciso agir como um gangster para um homem negro ganhar notoriedade. Versátil em sua produção, Ye cria arranjos elaborados com uso de vozes para suas bases. Além das vozes, seus aclamados samples de soul e o uso de instrumentos de cordas são uma inovação frente a combinação predominante de rap com batida instrumental do mainstream. Em Jesus Walks, Kanye faz seu manifesto. O single sintetiza as temáticas centrais da carreira do artista e explicita a sua necessidade de se reencontrar com Deus para finalizar com seu desespero kierkegaardiano. Em sua busca por uma voz através de relatos íntimos, Kanye criticou o consumismo e o racismo estrutural da indústria que ele se insere com um disco espirituoso e diverso.
Late Registration (2005) é a sequência de Dropout. O jovem que queria se apreciar amadureceu junto com suas temáticas e produção. Mais eclético, seus arranjos se inspiram no trip pop de Portishead e na percussão de Fiona Apple. A coprodução de Jon Biron ajuda na orquestração musical com uma variedade maior de instrumentos preenchendo as músicas: instrumentos de cordas, sopro, vozes e percussão preenchem nossos ouvidos em uma jornada inconformista e conflituosa de West. Há uma grande dualidade presente ao longo das faixas do disco: o glamour da fama e da ascensão na indústria versus a necessidade de se manter verdadeiro e lutar pelos seus princípios. Diamonds from Sierra Leone é a música que melhor representa essa natureza conflituosa de Kanye, que se coloca como um rockstar que utiliza diamantes de sangue. Apesar disso, Kanye se demonstra satisfeito com sua posição: seu auto-empoderamento começa a incomodar, mas ele não se importa com isso, ele só quer ver sua mãe orgulhosa e dar uma vida digna pra ela. Ambicioso, o recém alcançado status começava a seduzi-lo e a voz adquirida o faz querer elevar o hip hop a um patamar nunca visto.
Graduation (2007) é o voo mais alto de Kanye West. Insatisfeito somente com o sucesso de crítica e premiações, o artista queria o mundo. Para isso, Kanye busca em novas fontes maneiras de diversificar seu som. Inspirado por uma turnê ao lado do U2, West deseja dar ao hip hop a capacidade de lotar estádios. Então, sua composição adota o caráter grandiloquente de hinos. Músicas como Champion e Can Tell Me Nothing evocam a autoconfiança de Kanye com refrões edificantes. Diversificado, Kanye abraça pop, rock e eletrônica em seus samples capturando sons de Elton John, Michael Jackson e Daft Punk. A orquestração diminui, dando mais espaço para os sintetizadores carregados. Tematicamente o artista segue com a dualidade do ônus e do bônus da fama, reclamando das críticas da grande mídia sobre ele, do assédio dos paparazzis, mas exaltando a vida hedonista que status de celebridade proporciona. Mesmo com as críticas, Kanye utiliza da mídia para autopromoção, pois este disco rivaliza com Curtis de 50 Cent, lançado no mesmo dia. West visa tomar o espaço de 50, que ainda reinava absoluto nas rádios e sai vitorioso. Esta vitória é considerada um marco para o hip hop, evidenciando que o rap gangster se tornara defasado. Kanye chega ao topo e parece imparável, deslumbrado com o sucesso. No entanto, poucos meses após o lançamento de seu disco, Yeezy sofre um baque forte e sua musicalidade toma um rumo mais sombrio.
A Ressaca: a metamorfose de Kanye em seu luto.
Donda West, mãe de Kanye, falece. Em uma mistura de luto criativo e necessidade de entorpecimento, Kanye adere fielmente à máxima de que o show não deve parar. Com isso, o artista lota estádios em sua turnê enquanto performa seu desnorteamento teatralmente. Após os shows, isolado em um estúdio no Havaí, 808s and Heartbreak (2008) nasce. O disco marca sua reinvenção pessoal e artística. Completamente diferente de seus antecessores e sucessores, o álbum possui uma atmosfera lamentosa, distante da autoconfiança característica de Kanye. Vulnerável, West se sente perdido após a morte da mãe e o fim do noivado. Esse sentimento se traduz musicalmente em um disco de pouquíssimos samples ao longo das faixas, é um disco de Kanye despido expondo seus sentimentos mais primitivos. Com isso, sua aflição é demonstrada pelas batidas tribais da percussão, expondo seus sentimentos mais primitivos. Kanye abre mão do rap, fazendo baladas melódicas e cantando com ajuda de auto tune, que distorcem sua voz e evocam a confusão mental do artista. A caixa de ritmo 808, usada como principal instrumento para a maioria das faixas do álbum soa como um coração que pulsa o sofrimento do artista em algumas faixas. É o fim do deslumbramento com a fama e isso fica nítido na desoladora Pinocchio Story. A faixa de encerramento é a única ao vivo e o contraste do coro da plateia ignorando a narrativa melancólica e arrependida de Kanye é aterrorizante por evidenciar a cultura de idolatria à famosos do século XXI, que pouco se importa com o fator humano dos artistas.
A morte de Donda e o lançamento de 808s mostram Kanye experimentando do desespero kierkegaardiano. O homem que surgiu para o hip-hop narrando uma experiência de quase morte finalmente sentia medo dela frente a perda de sua mãe. Este momento da carreira é um dos pontos de virada definitivos na vida de Kanye enquanto artista pois, daqui em diante, consciente do culto às celebridades, West se mostrará cada vez mais sem amarras. É aqui que as coisas começam a se misturar, pois devido este temor pela morte, Kanye buscará se imortalizar. Essa busca nada mais é do que a tentativa de Kanye de se empoderar ainda mais dentro um mundo ansioso e dependente de ídolos. Parece paradoxal, mas Yeezy se utiliza desta realidade mesmo criticando-a para obter cada vez mais relevância. Kanye fará de tudo para se manter nos holofotes e usará de sua voz para lutar pelo que acredita, não se importando com o que os outros pensam. Seguindo essa filosofia egocêntrica e megalomaníaca, Kanye trilhará um caminho rumo à sua auto denominação como um Deus do século XXI.
A Deificação de Kanye: utilizando-se de um mundo ansioso para ter voz
A primeira grande demonstração desse novo Kanye é um tiro pela culatra: ao invadir o palco do VMA 2009 e interromper o recebimento do troféu de melhor clipe para Taylor Swift, West tinha a boa intenção de denunciar o racismo da indústria musical ao não entregar o prêmio para Beyoncé, mas a maneira como ele o faz acaba chamando mais atenção do que a mensagem pretendida. Com isso, somado ao recebimento morno de 808s, a grande mídia começa a bombardear Kanye West com críticas intensas, decretando o fim de sua carreira. Turnês canceladas, pressão constante e até críticas de Obama ele recebeu, West estava difamado publicamente e sua imagem era das piores.
Kanye decide se exilar para fugir do assédio constante. Após um período sabático por Japão e Itália, onde se aprofundou em arte e moda, West retorna para o Havaí com foco total na música. Yeezy sabia que sua volta precisava ser triunfal e, para isso, utilizou de suas melhores armas: colaborações e samples. Isolado do mundo no estúdio, West convidou figuras como Jay-Z, Rick Ross, Bon Iver, Rihanna, Kid Cudi, Nicki Minaj, Pusha T e muitos outros. Ajudado por sua comitiva e com lançamentos gratuitos semanais nomeados de Good Friday, West começava a sua redenção. Os singles – que foram muito bem recebidos – eram um aperitivo para o disco que estava a caminho e muitos deles tiveram versões em My Beautiful Dark Twisted Fantasy (2010).
O quinto álbum de estúdio de Kanye West é, ao mesmo tempo, o pedido de desculpas e o dedo do meio dele para o mundo. O caminho que ele pavimentou em seus três primeiros álbuns se extrapola a uma magnitude jamais vista: se há um adjetivo para definir este lançamento certamente é grandioso, em todos os sentidos possíveis. O ego de West nunca esteve tão inflado e esta extravagância é refletida em sua produção, que possui a diversidade instrumental de Late Registration somada aos sintetizadores carregados dos dois discos anteriores. A potência destas gravações já é sentida em sua abertura que possui uma orquestração divinal e edificante, enquanto sua letra lida com a dualidade da fama. Este tema é central para o disco, que é essencialmente sobre fama, mas sob uma perspectiva individual, como enuncia seu título.
Todas as letras são relacionáveis e ouvimos Kanye retornar audacioso de sua primeira queda, fortalecido ao ponto de se colocar no topo do Monte Olimpo. No entanto, tanto em Power, quanto em Gorgeous, West tem clareza que há um preço para a fama, principalmente para o homem negro nos Estados Unidos e a dicotomia entre divino e profano também presente neste álbum evidencia isso. Ao criar essa dualidade, West se coloca como um Deus e um monstro contemporâneo. Ciente da cultura de idolatria do século XXI, o artista se sente como um dos novos deuses do mundo e que seu modo de vida excessivo e hedonista pode ser aspiracional para muitos. Em contrapartida, do lado aterrorizante, West condena o comportamento ridículo e superficial do mundo contemporâneo que idolatra artistas negros, mas os crucifica na primeira oportunidade que um erro for cometido.
Representando a unidade de todas estas dualidades, na nona faixa de seu disco, Kanye cria um hino de autoaceitação: Runaway. Com uma duração de nove minutos, a música é praticamente um hip hop progressivo em que Kanye expurga seus demônios e se demonstra impressionantemente humano, abraçando todas as suas falhas e brindando por elas. O restante do álbum mantém essa proximidade do autoproclamado Deus com seus ouvintes, mas mostra uma faceta desnorteada de Kanye, que não parece possuir respostas para o que vem em seguida e pretende, de alguma forma, se desprender das superficialidades do confuso século da ansiedade.
Se em Gorgeous Kanye questionava se o hip-hop era um eufemismo para uma nova religião, a recepção majoritariamente positiva de My Beautiful Dark Twisted Fantasy foi a confirmação que ele precisava. Então, naturalmente, Watch the Throne (2011), o álbum seguinte, exploraria a liturgia desta nova fé. Kanye se une ao seu irmão musical, Jay-Z, elevando os dois ao papel de sumo pontífices desta doutrina. Uma liturgia pautada pela arte e pela negritude. No Church in the Wild é o manifesto desta religião com sua letra consciente dos desafios de ser negro em gueto dos Estados Unidos e da inspiração que Kanye e Jay dão a eles ao serem negros em posição de poder. Para celebrar a excelência preta, West e Z se colocam no epicentro da arte moderna e celebram figuras importantes da luta por direitos civis dos anos 60 como Otis Redding e Nina Simone. O álbum é uma celebração pulsante da cultura negra e um testemunho de que o hip-hop e suas influências são movimentos artísticos assim como o Renascimento, mas com escrituras únicas e próprias.
Após formada a base dessa nova religião, Kanye lança para o mundo seus discípulos. Em um projeto de sua gravadora G.O.O.D. Music, West lança Cruel Summer (2012), um álbum colaborativo que juntou lendas como Raekwon e Ghostface Killah a novatos como Teyana Taylor e Travis Scott. O álbum conta com o retorno de colaboradores notórios para a discografia do artista e soa como uma grande reunião desse autointitulado Deus com seus apóstolos. A produção do álbum surfa na sonoridade do trap que estava emergindo no cenário independente e tematicamente Kanye aborda o imaginário divino que ele criou para si em New God Flow e se compara a Jesus em Don’t Like. 1. A recepção deste disco não foi das melhores e o fantasma do sucesso de My Beautiful Dark Twisted Fantasy assombrava Yeezy.
Incomodado com as demandas da indústria musical por um novo Twisted Fantasy e revoltado por ter sido subestimado enquanto fashionista, Kanye West decide lançar um álbum de protesto indo contra todas as expectativas que depositavam nele. Com isso, em mais uma comparação a Jesus, ele lança Yeezus (2013). Em seu sexto álbum solo, Kanye busca denunciar o racismo velado da alta classe que não consegue enxergá-lo como um artista completo, apenas vendo-o como musicista. Além disso, ele se queixa das demandas comerciais por um som familiar para tocar no rádio e gerar lucro como forma de escravidão moderna.
Já na primeira faixa é possível sentir a disrupção sonora e lírica. Kanye enuncia seu renascimento musical enquanto abdica de toda sua sonoridade de projetos anteriores. Isso fica claro logo no primeiro verso que termina em uma ponte para um sample de soul, sua marca registrada, só para que ele seja abruptamente cortado. Yeezy renuncia a qualquer apelo comercial, adotando uma produção experimental que emergia na cena independente do hip-hop. Em vez de melodias com orquestrações grandiosas e extravagantes, ouvimos mais ruídos e distorções de sintetizadores e a sonoridade é agressiva para os ouvidos.
Esta agressividade se traduz no lirismo de West, que se encontra indignado com as amarras criadas para artistas negros pela indústria. Ser um Deus no século da ansiedade soa doloroso e não há bem material que anestesie este sofrimento. À medida que a narrativa do álbum se desenvolve, acompanhamos uma história de um protagonista se tornando cada vez mais exausto com a superficialidade do mundo e suas relações de poder. O racismo estrutural o exaure, o consumismo aliena, mas não ajuda, ele busca um propósito e o encerramento dissonante de todo o restante do álbum soa como o encontro deste protagonista com a solução de seus problemas: o amor. A sonoridade de Bound 2 é confortável e relembra a musicalidade dos primeiros projetos de Kanye, é pelo amor e pela formação de uma família que West buscará acabar com suas angústias.
O Estágio ético de Kanye: reflexões sobre sua existência enquanto forma uma família
Segundo Sören Kierkegaard, a transição do estágio estético para o ético acontece quando o homem experimenta o esgotamento do prazer. Para o filósofo, os prazeres mundanos são satisfatórios até certo ponto, pois estas sensações passageiras, individuais e irresponsáveis são incapazes de preenchê-lo e dar-lhe sentido na vida. Nesta busca por sentido, o homem abandona o seu egoísmo e passa a buscar significado no próximo, vivendo como um ser social. Ao se tornar coletivista, o homem passa a viver em prol da sua comunidade e dos seus, agindo de acordo com códigos morais e éticos que regem este sistema. No estágio ético, o homem abandona os prazeres em prol dos deveres, esse despertar pode vir de diversas formas e um dos exemplos de Kierkegaard é por meio do casamento.
Embora Kanye tenha trilhado uma jornada bem-sucedida para se autoproclamar um Deus contemporâneo, o retorno não lhe foi suficiente. Como evidencia a narrativa de Yeezus, o artista enfrentava um período de esgotamento com a superficialidade do mundo até encontrar seu propósito no amor, demonstrado pela faixa final do disco, Bound 2, e seu emblemático clipe ao lado de sua até então noiva, Kim Kardashian. O casamento com Kim e o nascimento da primeira filha do casal, North West, dias antes do lançamento de Yeezus deram uma nova perspectiva para Yeezy: constituir uma família. Kanye se encontrava numa encruzilhada entre manter uma vida de excessos e cuidar dos seus, dualidade representada de maneira minimalista na capa de The Life of Pablo (2016), seu primeiro álbum após o nascimento de North.
Assim como sua capa, este álbum aborda essa dualidade e faz dela sua temática principal. Kanye adentra o estágio ético Kierkegaardiano ao olhar para o passado hedonista para almejar um futuro mais responsável ao lado de sua família. Este olhar em retrospecto autocrítico se reflete em sua musicalidade, Pablo é uma grande miscelânea de todos os sons anteriores da carreira de West: há o experimentalismo de Yeezus, as colaborações de Twisted Fantasy e os icônicos samples de soul do começo da carreira.
Já em sua primeira faixa, Kanye retorna à devoção cristã, pedindo a orientação de Deus para adotar uma vida mais serena. Pablo é um álbum essencialmente cristão. Mesmo que boa parte de suas faixas não abordem diretamente a religião de Kanye, o disco lida com a culpa cristã do artista que expõe genuinamente seu esforço em tentar reconquistar valores que ele julga ter perdido para não sucumbir às tentações mundanas. Nessa viagem dentro da cabeça de West, temos uma produção conflituosa, que alterna músicas edificantes com sombrias para engrandecer este dilema central de sua vida. No desabafo que encerra este álbum, em um lampejo de autoconsciência, Kanye relembra sua primeira faixa de College Dropout para resgatar os valores pelos quais ele lutava desde o começo de sua carreira e fazer as pazes consigo e Deus.
Se Pablo é um olhar para o passado de Kanye, Ye (2018) e Kids See Ghosts (2018) são panoramas do presente de West e um vislumbre de seu futuro, respectivamente. Após um período turbulento em sua vida (o sequestro de Kim Kardashin, o polêmico apoio a Donald Trump, a fala sobre escravidão, etc). Yeezy mantém a pegada introspectiva de seu disco anterior nestes novos projetos para se despir completamente para os seus ouvintes.
Ye é o expurgo dos fantasmas pessoais de West, sua terapia musical. Adentramos a psique despedaçada deste artista que desabafa sobre suas tendências suicidas, sua bipolaridade e da preocupação com a criação de sua filha. O disco é um grito desesperado por liberdade e expressa a vontade de West em lidar com seus problemas para cuidar de quem ele ama. Enquanto isso, Kids See Ghosts é o exercício da liberdade de Kanye. Junto ao também problemático Kid Cudi, a dupla se empodera através de um álbum fantasmagórico e eclético. Os fantasmas do título se apresentam através da produção do álbum e a dupla se une para enfrentar seus problemas psicológicos musicalmente. Da batalha em dupla, os músicos extraem maneiras de se libertar de seus demônios e seguir em frente aceitando suas condições. Deste renascimento, Cudi e West almejam um futuro de calmaria e paz interna pedindo a bênção divina para se manterem sãos em um mundo doente.
Ao olharmos estes três últimos álbuns em sequência e analisarmos suas temáticas, podemos perceber a composição do estágio ético de Kanye West. Apesar de suas polêmicas e problemas externos ao campo musical, o artista desconstrói sua imagem divinal para expor os problemas psicológicos trazidos pela superexposição do mundo contemporâneo, se mostrando extremamente humano perante seus ouvintes; de nada adianta ser um Deus, se ele está sozinho. Mantendo a cabeça erguida e o ego inabalado, West se prende às coisas que julga importante para fazer algo que ele buscava desde seu primeiro álbum: se empoderar. Devido à sua visão egocêntrica de mundo, West acredita que ao se empoderar, ele consegue servir de exemplo para os outros e busca se reerguer expondo seus fantasmas para inspirar todos, é aí que mora sua ética. Apoiado em seus amigos (representados por Kid Cudi em Kids See Ghosts), familiares e em Deus, West reconstrói sua força a partir de um olhar crítico para o seu próprio passado e termina esta trinca de álbuns flertando com um futuro inspirador após resgatar seu contato com a religiosidade.
O Estágio Religioso de Kanye West: buscando a individualidade plena ao lado de Deus.
Segundo Kierkegaard, uma vida no estágio ético é incompleta, pois ela abraça somente valores terrenos e finitos. Com isso, o indivíduo, essencialmente ansioso, busca no incompreensível uma razão de viver. Esta busca parte da compreensão de que uma vivência exclusivamente mundana não é capaz de dar ao indivíduo uma existência plena, visto que viver somente pelo mundo real não acabaria com seu desespero, seu medo da morte. Assim, o ser busca no incompreensível uma razão para viver e, segundo o filósofo, somente a fé é capaz de libertar o homem de seu desespero. O filósofo expõe que esta fé é como um salto no escuro, pois não há garantia alguma de que o homem terá a vida eterna ao lado de Deus, mas, mesmo assim, este é o movimento que o homem deve fazer se quiser alcançar a plenitude da existência.
Ao anunciar o lançamento de Jesus is King (2019), Kanye realiza sua transição do estágio ético para religioso. Embora muitos esperassem o antecipado Yandhi, West muda completamente o seu rumo musical e decide compor em prol de Jesus. Esta mudança abrupta de direção em sua carreira pode ser considerado seu salto no escuro. Kanye já não possuía a aclamação de outrora e esta alteração de paradigmas foi extremamente controversa. No entanto, Ye pouco parece se importar com isso e pretende dedicar o restante de sua carreira exclusivamente a Deus. Muito pelo contrário, toda a trajetória musical de West aborda a questão da libertação, o empoderamento individual pela busca de uma voz, só que agora sua voz está voltada para Deus.
Em Jesus is King, Kanye mantém os valores que sempre lutou em sua carreira. Partindo de uma perspectiva própria, o artista aborda toda a controvérsia de sua mudança, se colocando merecedor de todas as críticas que recebeu até aqui. Mesmo com todas as desconfianças sobre ele, West demonstra que sua vontade de viver por Cristo é legítima em God Is, explicitando o quanto Deus significa pra ele em uma de suas performances musicais mais emocionadas de sua carreira. Sua preocupação com a família permanece, assim como sua preocupação com questões sociais, em especial a problemática da 13ª Emenda para o encarceramento massivo da população negra dos Estados Unidos. West se coloca como um soldado de Cristo e busca, em seus ensinamentos, transmitir sua mensagem para aqueles que ele buscou defender. Kanye acredita que a libertação virá pelo Evangelho e deseja que todos sigam o mesmo caminho que ele.
Este salto no escuro de Kanye pode causar estranheza para muitos, mas é apenas um caminho natural que o artista buscou percorrer desde o começo de sua carreira. Kanye nunca teve vergonha de expor sua religiosidade em suas composições e tentou atrelá-la às suas lutas pessoais. Esse “novo Kanye” surge após um momento turbulento de sua vida e parece como uma etapa de auto tratamento através da fé. No entanto, West sempre busca transformar seus pensamentos em arte e convida a todos para participar desta terapia com ele. Sua nova faceta serena e sem palavrões prega por união e paz, pedindo a benção em todos aqueles que estiverem ao lado dele. Sua pregação é pela música, instrumento capaz de mover qualquer pessoa e sua intenção é servir de inspiração a todos que queiram ouvi-lo. Kanye busca a serenidade e a calmaria após tantos pedidos de desculpas. Após a tempestade, sua calmaria vem através da auto aceitação ao lado de Deus.
Revisitar toda a cronologia da discografia de West comprova que Kanye jamais perdera a sua essência. Embora sua carreira seja conflituosa e diversificada, tematicamente, de The College Dropout à Jesus is King, Kanye reivindica as mesmas coisas: ser visto como um artista completo e inspiracional. Seus discos são espelhos do artista e das fases de sua vida. Com diversas mudanças sônicas em suas produções, seus álbuns expõem a dualidade da fama, mostrando seu lado glamouroso e seu lado perverso, evidenciando que a fama não soluciona todos os problemas e expondo que até alguém com um ego como o dele possui demônios. Mesmo assim, com todos seus defeitos e erros, Kanye luta por sua raça, sua família e por si. Suas exposições honestas o humanizam e inspiram que àqueles que ele defende possam trilhar o mesmo caminho que o dele. O menino que largou a faculdade para reivindicar que possa haver hip-hop de todos os tipos, incluindo louvores, segue sua jornada ao lado de seu Deus. Após causar diversas revoluções no gênero neste século da ansiedade, se consolidando não só como um artista completo, possuindo uma voz para muitos. Kanye ainda tem uma longa carreira pela frente e seu comportamento imprevisível não nos permite saber qual será seu próximo passo, mas, pelo decorrer de suas músicas, parece que o artista está cada vez mais pleno para lutar pelo que ele julga como certo.