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Ilha

Ilha

Wallace Andrioli - 21 de setembro de 2018

Glenda Nicácio e Ary Rosa têm um claro talento para filmar afetos. “Café com Canela” (2017), longa-metragem anterior da dupla, tira daí o que tem de força. Algo parecido ocorre com “Ilha”. O problema é que os diretores insistem em pequenas experimentações de linguagem que desviam o olhar do que realmente há de bom nos dois filmes – as histórias simples e ternas de uma jovem mulher ajudando sua vizinha e ex-professora a abandonar o luto e de um criminoso apaixonado por cinema – e os fazem soar ao mesmo tempo pretensiosos e primários. Pretensiosos, em “Ilha”, pelo uso da metalinguagem como meio para se autoatribuir excessiva importância. Primários, por não conseguirem transformar o desejo de diálogo com todo um conjunto de realizadores em algo que vá além da aparência de exercícios estudantis feitos inspirados em aulas sobre a modernidade cinematográfica.

No caso de “Ilha”, isso se torna ainda mais grave em razão do papel central que o próprio cinema ocupa na narrativa. Nicácio e Rosa partem de uma premissa que remete, inicialmente, a “O Rei da Comédia” (1983), de Martin Scorsese: homem (Renan Motta) aparentemente maluco sequestra um importante cineasta baiano (Aldri Anunciação) para fazer um filme com ele. Toda a construção visual se dá a partir do diálogo entre os momentos de interação dos dois personagens, registrados por um terceiro, e trechos do filme ficcional (baseado na vida do sequestrador) realizado por eles. No meio do processo, ocorre um envolvimento afetivo de onde vêm as melhores cenas de “Ilha”: a conversa no píer, em que, apesar das falas empostadas, ao menos há uma composição mais contemplativa da imagem, que permite à história “respirar” e revelar aspectos das personalidades de seus protagonistas, e a performance emocionada de “Clube da esquina nº 2”.

Só num momento do filme a metalinguagem é de fato bem utilizada. O criminoso e o cineasta caminham à noite por uma estrada de terra, filmados pelo onipresente comparsa do primeiro, até que iniciam uma briga, logo transformada em sexo. Ao perceber a mudança da natureza do que está acontecendo, o operador da câmera a deposita no chão e vai embora. Esse gesto estabelece o enquadramento da cena a partir dos pés dos personagens, mantendo todo o restante de seus corpos fora de quadro. É uma escolha criativa, sobretudo porque se justifica diegeticamente sem prejudicar a intensidade emocional da ação registrada.

De resto, porém, “Ilha” fracassa em todos seus intentos, por escolhas equivocadas de Nicácio e Rosa. Eles tentam fazer um filme poético meramente colocando seus protagonistas para declamar com empostação reflexões sobre a vida. Pretendem se declarar ao cinema, mas diluem esse amor na vontade excessiva de explicitar a própria linguagem. Optam por um clímax bastante melodramático que, para funcionar, exigiria envolvimento mais efetivo com os personagens, algo impossibilitado pela insistência dos diretores em colocar à frente da contação de história a autoconsciência narrativa. E, cereja do bolo, ainda disparam referências sem qualquer sentido a Glauber Rocha.

Vale comparar brevemente “Ilha” com “Lembro Mais dos Corvos”, de Gustavo Vinagre, outro filme exibido no 51º Festival de Brasília (em mostra paralela) e que também utiliza a metalinguagem. No entanto, Vinagre, ao aproximar a câmera de Julia Katharine, atriz de dois de seus curtas – “Os Cuidados que se tem com o Cuidado que os Outros Devem ter Consigo Mesmo” (2016) e “Filme-Catástrofe” (2017) – jamais submete o delicado relato dela a experimentos de linguagem que chamam excessiva atenção para si. Deixar Katharine falar, revelar momentos tristes e duros de sua vida, contar sua relação afetiva com o cinema, encenar para a câmera. É o suficiente para extrair da atriz/personagem cenas emocionalmente potentes e para comentar o papel dos filmes na vida de quem os ama.


Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Plano Aberto para o 51º Festival de Brasília. Para ler outros textos de nossa cobertura, clique aqui.

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