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Jogador nº1

Jogador nº1

Matheus Fiore - 28 de março de 2018

O mundo dos jogos evoluiu ao ponto de hoje termos uma modalidade esportiva dedicada exclusivamente a ele: o e-sport. O que se restringia a nichos online, hoje é parte da cultura popular, algo de fácil constatação se notarmos que partidas do jogo League Of Legends são transmitidas pelo SporTV, talvez o mais famoso canal esportivo do Brasil. Adaptado do livro de Ernest Cline, “Jogador nº1” é a reprodução dessa cultura em forma de filme. Mas, mais do que isso, é uma obra também interessada em, além de homenagear, levantar questões sobre essa geração gamificada, fazendo seu público apreciar um deleite visual sem esquecer de pensar sobre o necessário equilíbrio entre o real e o virtual.

“Jogador nº1” se passa em 2044. Após a criação do jogo OASIS, a humanidade imergiu no universo virtual, que passou a ser visto não só como um escapismo da realidade, mas como uma expansão do mundo material. Wade Watts, jovem órfão que vive em uma espécie de favela em Columbus, com edifícios improvisados e empilhados, é um dos aficcionados pelo game. Watts passa praticamente todo o seu dia imerso no OASIS, sob o disfarce de seu avatar, Parzival, nome que faz referência ao mito de Perceval, herói que buscava o Santo Graal – aqui, o Graal é representado por três chaves que levam a um tesouro escondido pelo criador do jogo, James Halliday.

Já nas primeiras cenas do filme, a discrepância estética entre o mundo virtual e o real criam um cenário propício para tecer crítica sobre aquela sociedade. Se dentro do OASIS há uma overdose de cores, a região onde Wade mora é predominantemente cinza: desde as vestimentas às construções e o céu. Os habitantes da versão futurista de Columbus pouco prezam pelo ambiente físico onde vivem, fazendo dele apenas um palco para que possam, ao logar em seus “óculos de realidade virtual”, se desligar completamente de suas vidas. Com isso, “Jogador nº1” analisa o desapego pelo real que domina a juventude viciada no virtual.

É interessante como a diferença entre os mundos não existe apenas nas cores e na lógica dos mundos – enquanto a cidade de Columbus é totalmente feita de restos de carros, containers e demais objetos, o OASIS é um ambiente de criação e reinvenção constantes -, mas também na forma como a obra é filmada. Se o mundo real utiliza muitos close-ups e planos estáticos, quando a obra vai até o virtual, há uma câmera muito mais dinâmica, que se movimenta ao redor da ação, traz diversidade de pontos de vista e cenas mais cadenciadas devido à montagem acelerada, imprimindo vivacidade à narrativa.

Em certo ponto do filme, o protagonista afirma que as pessoas vão ao OASIS por poderem ter algo e ficam por poderem ser algo, o que permite reflexões sobre o mundo externo da obra de Spielberg. Como boa ficção que é, “Jogador nº1” utiliza uma ambientação futurista e distópica para fazer analogias sobre o período atual. E o futuro criado pelo filme é sombrio: além da estética há pouco comentada, há claras divisões sociais que mantém a maior parte da população presa em um cenário de privação e pobreza. Por exemplo: pelo fato de acompanharmos a trama sob os olhos de Wade, conhecemos apenas as áreas de pobreza que compõem seu bairro.

Há um forte clima de escassez que permeia todo o núcleo da vida real de Wade, que retrata pessoas desesperadas por conseguirem, no jogo, não só o escapismo de suas rotinas, mas conquistas que possam proporcionar a eles alguma recompensa financeira no mundo físico. Há, por exemplo, um personagem que vende todos os seus bens a fim de investir no equipamento necessário para completar uma missão com alta recompensa no OASIS – e, infelizmente, o roteiro não encontra tempo para trabalhar melhor estas questões, que poderiam elevar o já ótimo filme a um patamar ainda superior.

Em contraponto à miséria que há em toda a vida da população média, há a IOI, empresa criada para tentar decifrar o quebra-cabeças deixado por James Halliday. A IOI é a clássica empresa oligopólica. Liderada pelo egocêntrico Nolan Sorrento (Ben Mendelsohn), a mecanizada e gananciosa companhia muito parece uma cutucada na indústria dos videogames – vale lembrar que, em um dos flashbacks do filme, Nolan sugere ao criador do OASIS que crie um sistema de compra de benefícios exclusivos, privilegiando os jogadores mais abastados, similar ao conflito que ocorre na indústria hoje, nos famosos jogos “pay to win”.

Nolan é, além do clássico engravatado ganancioso, um antagonista cheio de características interessantes na construção de sua personalidade. Sua gravata, por exemplo, traz suas iniciais grifadas acima do nome da empresa, criando uma caracterização ególatra para o personagem. Mais interessante ainda é ver como é o avatar de Nolan dentro do OASIS: um ser musculoso, com maxilar largo e ombros braços, além do sutil detalhe da franja, que remete diretamente à de Clark Kent, o Superman – o que escancara os delírios de grandeza e poder que formam o vilão.

É elogiável como “Jogador nº1” não utiliza os games e demais elementos da cultura pop apenas como referências nostálgicas a fim de conquistar o público, mas para estruturar a narrativa. Toda a trama gira em torno de uma lógica de videogame, incluindo desde as fases aos chefões, easter eggs, evoluções e habilidades, algo que muito é feito no cinema “videogame”, mas poucas vezes com tanto sucesso como é visto aqui.  O motivo do sucesso é justamente utilizar tais elementos como definidores da trajetória de Wade e seus amigos, já que toda a história do longa gira em torno da evolução do avatar de Wade e sua busca pelos poderosos artefatos que mudam o rumo do OASIS.

Há sempre um maravilhamento ocasionado pela imersão e pelo senso de parceria criado entre público e personagens, já que ambos descobrem os segredos do filme juntos – algo que não ocorre em “Tomb Raider: A Origem”, por exemplo. Além disso, a escolha de abraçar a estética dos videogames sem tentar tornar tudo excessivamente verossímil ou lógico é um grande acerto, que tem como resultado a emulação das imperfeições existentes também nos MMORPGs, como a falta de um senso estético uniforme e a poluição visual – personagens de diferentes estilos dividem espaço e tornam o OASIS um mundo muito plural, unindo desde a idade média às tramas futuristas.

Na dicotomia entre real e virtual, “Jogador nº1” chega a lembrar “Blade Runner 2049”. Mas os caminhos seguidos não poderiam ser mais distintos. Se no filme de Denis Villeneuve a imersão no virtual é uma forma de entorpecer a percepção de realidade dos personagens, que renegam suas condições a fim de manter sua alienação, a obra de Steven Spielberg trata o virtual como um inevitável e necessário escapismo para um mundo acinzentado e triste. Spielberg, porém, consegue deixar sempre uma ponte para que essa relação de alienação continue sendo debatida, algo que é de fácil percepção se lembrarmos que, quanto mais dramática se torna a obra, mais ambientada no mundo real ela passa a ser, obrigando seus personagens a saírem do OASIS para resolverem problemas.

Por trás do véu de entretenimento e de seus predicados narrativos, “Jogador nº1” é um filme que ainda consegue documentar um recorte específico de sua época como poucos. É um longa capaz de atrair a atenção de toda uma geração de apaixonados por jogos para, em seu apogeu, fazer esse público olhar internamente e questionar os rumos da relação entre a sociedade e as bolhas virtuais. O grande mérito de Spielberg é fazer de seu filme não apenas um carrossel de referências e entretenimento, mas um meio para provocar o debate sobre o necessário equilíbrio entre o real e o virtual. Porque se os personagens não encontram no real o mesmo prazer que encontram no virtual, a saída não é escolher apenas um deles, mas buscar um meio de reverter o cenário e tornar o real igualmente prazeiroso.

 

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