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Jornada Amaldiçoada: Harry Potter e a Ordem da Fênix

Jornada Amaldiçoada: Harry Potter e a Ordem da Fênix

Gustavo Pereira - 13 de outubro de 2016

O quinto livro da série Harry Potter pode ser analisado por três aspectos distintos: político, narrativo e filosófico. Todos se entrelaçam e interferem entre si, de forma que a plena compreensão do que sustenta a história de JK Rowling enriquece a leitura.

Levando em conta que a Inglaterra é uma monarquia parlamentarista, e Cornélio Fudge detém o título de Ministro da Magia, estou comparando a estrutura política em Harry Potter ao parlamentarismo inglês (inclusive, no terceiro livro existe um intercâmbio de informações entre o Ministro da Magia e o Primeiro-Ministro trouxa quando Sirius Black foge de Azkaban).

No parlamentarismo, o povo elege os deputados e o partido com o maior número de cadeiras indica o Primeiro-Ministro. Este, por sua vez, precisa manter a maioria dos deputados a seu favor, caso contrário pode sofrer uma moção de censura e perder o cargo. Cabe ao Primeiro-Ministro montar o gabinete, guiar o legislativo e viabilizar a agenda de seu partido. Existem inúmeros dispositivos que controlam o poder do Primeiro-Ministro para que ele atue de acordo com os interesses da Nação e não dos seus próprios.

Em Harry Potter, não há nenhum indício de um parlamento bruxo. O Ministro da Magia pode perder o cargo (Fudge guia todos os seus passos no caminho de se perpetuar nele), mas não é exatamente explicado como. Há um indício de que o cargo é passado por nomeação do ministro anterior

(Dumbledore) Jamais quis o cargo de ministro, ainda que muita gente quisesse que ele o assumisse quando Emília Bagnold se aposentou.

Sr. Weasley. A Ordem da Fênix

O Ministro da Magia também tem forte influência na Confederação Internacional de Bruxos, espécie de ONU mágica, além de nomear e demitir membros da Suprema Corte dos Bruxos. Se o Primeiro-Ministro, por definição, já retém os poderes do Executivo e do Legislativo, o Ministro da Magia também pode assumir a presidência do Poder Judiciário. Cornélio Fudge é praticamente editor-chefe do Profeta Diário, único jornal com alcance e credibilidade nacional, determinando o que pode ou não ser pauta.

Essa estrutura de poder só encontra paralelos em regimes de exceção, como a Ditadura Militar no Brasil, ou mesmo o Nazismo Alemão. Quando o Ministro se vê ameaçado por Dumbledore e Potter, usa toda a máquina pública, aparelhada por ele, para desacreditá-los junto à opinião pública, que não tem outros meios de acesso à informação.

Não é preciso ler Harry Potter para saber que isso é uma catástrofe, basta ler os jornais e ver a bizarrice do movimento Escola Sem Partido, brilhantemente representado n’A Ordem da Fênix pelos Decretos Educacionais. Inclusive, se existe maluco defendendo que as escolas brasileiras doutrinam crianças, Cornélio Fudge acreditava que Dumbledore estava montando um exército particular para tomar o Ministério da Magia de assalto. Porque só uma destas afirmações soa absurda para muitas pessoas permanece um mistério além da minha vã capacidade de compreensão.

Armada de Dumbledore: exemplo sensacional de desobediência civil

Armada de Dumbledore: exemplo sensacional de desobediência civil

Todo diretor e diretora de Hogwarts trouxe algo novo à pesada tarefa de dirigir esta escola histórica, e assim deve ser, pois sem progresso haverá estagnação e decadência. Por outro lado, o progresso pelo progresso não deve ser estimulado, pois as nossas tradições comprovadas raramente exigem remendos. Então um equilíbrio entre o velho e o novo, entre a permanência e a mudança, entre a tradição e a inovação, porque algumas mudanças serão para melhor, enquanto outras virão, na plenitude do tempo, a ser reconhecidas como erros de julgamento. Entrementes, alguns velhos hábitos serão conservados, e muito acertadamente, enquanto outros, antigos e desgastados, precisarão ser abandonados. Vamos caminhar para a frente, então, para uma nova era de abertura, eficiência e responsabilidade, visando a preservar o que deve ser preservado, aperfeiçoando o que precisa ser aperfeiçoado e cortando, sempre que encontrarmos, práticas que devem ser proibidas.

Umbridge. A nova canção do Chapéu Seletor

A forma como as leis são solenemente ignoradas, deturpadas ou mesmo enfiadas goela abaixo ao longo das 700 páginas compõem uma escalada de revogação do Estado de Direito que degrada instituições e coloca qualquer cidadão em risco. Os paralelos com a política brasileira de 2016 francamente me assustam: Fudge manipulando a audiência disciplinar de Harry para forçar sua expulsão de Hogwarts parece com os mandados arbitrários de prisão da Polícia Federal, amplificados pela cobertura da mídia para em seguida serem revogados; as constantes canetadas da Suprema Corte, baixando Decretos Educacionais para regulamentar Hogwarts são como o Supremo Tribunal Federal rasgando a Constituição Federal para prender condenados em segunda instância, antes que estes possam esgotar todos os recursos de defesa; Dolores Umbridge, personagem mais detestável da Literatura desde Tom Buchanan (O Grande Gatsby), é Gilmar Mendes, funcionária pública dotada de um comportamento partidário asqueroso travestido de cínica institucionalidade.

– Agora o Ministério acredita que um estudo teórico será mais do que suficiente para prepará-los para enfrentar os exames, que, afinal, é para o que existe a escola. E o seu nome é? – acrescentou ela, fixando o olhar em Parvati, que acabara de erguer a mão.

– Parvati Patil, e não tem uma pequena parte prática no nosso N.O.M. de Defesa Contra as Artes das Trevas? Não temos de demonstrar que somos capazes de realizar contrafeitiços e coisas assim?

– Desde que tenham estudado a teoria com muita atenção, não há razão para não serem capazes de realizar feitiços sob condições de exame cuidadosamente controladas – respondeu a professora, encerrando o assunto.

– Sem nunca ter praticado os feitiços antes? – perguntou Parvati, incrédula. – A senhora está nos dizendo que a primeira vez que poderemos realizar feitiços será durante o exame?

– Repito, desde que tenham estudado a teoria com muita atenção…

– E para que vai servir a teoria no mundo real? – perguntou Harry em voz alta, seu punho mais uma vez no ar.

A Prof.ª Umbridge ergueu a cabeça.

– Isto é uma escola, Sr. Potter, não é o mundo real – disse mansamente.

A professora Umbridge

Seria impossível que tamanha atrocidade legal não comprometesse o tom da narrativa. Harry Potter e a Ordem da Fênix é o livro de leitura mais sofrida e não falo isso pela qualidade do texto, mas pelo seu teor. Não existe respiro, sempre algo de ruim está acontecendo: quando Harry não está sendo julgado criminalmente por um tribunal farsesco com a clara intenção de condená-lo, está sendo difamado pelo principal jornal do país, ou sofrendo com a carga de estudos numa escola cada vez mais cerceada para que a educação se torne engessada e estéril, isso se não for a hora dele sofrer para entender a sua primeira relação amorosa. Até o quadribol fica amargo.

A gente é contra a violência, mas Draco mereceu uns catiripapos bem dados

A gente é contra a violência, mas Draco mereceu uns catiripapos bem dados

O regresso de Voldemort, como profeticamente anunciou Dumbledore no ano anterior, traz discórdia e inimizade. Não existe um lugar seguro. Todo buscam calar as vozes dissidentes para restaurar o simulacro de paz.

É neste ambiente desolador que Rowling apresenta a personagem mais encantadora da série: Luna Lovegood agrega o óbvio ar de alienação ao mundo real com uma sinceridade praticamente pornográfica e uma sensibilidade ímpar, capaz de iluminar a maior das escuridões, dizendo exatamente o que precisa ser dito na hora exata.

– Você já… – começou ele. – Quero dizer, quem… alguém que você conhecia morreu?

– Morreu – disse Luna com simplicidade –, minha mãe. Era uma bruxa extraordinária, entende, mas gostava de fazer experiências e um dos seus feitiços um dia deu errado. Eu tinha nove anos.

– Lamento – murmurou Harry.

– É, foi horrível – disse Luna informalmente. – Eu me sinto muito triste às vezes. Mas ainda tenho o meu pai. De qualquer jeito, ainda vou rever minha mãe um dia, não é?

Luna. Começa a Segunda Guerra

A morte é a principal questão filosófica do livro. Dumbledore e Nick Quase-Sem-Cabeça adotam uma abordagem platônica, e por isso o diretor não teme a morte (já em A Pedra Filosofal ele diz que “para uma mente bem estruturada, a morte é apenas uma aventura seguinte”) e o fantasma não quis prosseguir.

Eu tive medo da morte. Preferi ficar. Às vezes me pergunto se não deveria… bom, isto que você vê não é cá nem lá… de fato, eu não estou cá nem lá… Não conheço os segredos da morte, Harry, porque escolhi uma fraca imitação da vida.

Nick. Começa a Segunda Guerra

Já Harry tem uma visão completamente Schopenhaueriana do tema, quando a razão, simbolizada pela profecia envolvendo ele e Voldemort, o empurrou para a “certeza assustadora da morte” e lhe desnorteou completamente, tirando seu gosto pela vida. A visão do bicho-papão da Sr.ª Weasley, por sua vez, pode ser analisada pelo questionamento de Michel de Montaine, que relaciona morte e liberdade, dividindo as pessoas entre as esperam pela morte “trêmulos e apavorados” e as que “suportam-na mais facilmente que a vida”. É curioso perceber como tantas visões particulares tornam o tom geral do livro muito mais aberto e respeitoso em relação à morte, sem dar uma explicação definitiva. Ou, como disse Epicuro:

A morte é uma quimera: porque enquanto eu existo, não existe a morte; e quando existe a morte, já não existo.

Os grandes mistérios guardados no Departamento de Mistérios nada mais são do que questões filosóficas: consciência, tempo, razão, amor e morte

Os grandes mistérios guardados no Departamento de Mistérios nada mais são do que questões filosóficas: consciência, tempo, razão, amor e morte

A mensagem final (final mesmo, nas últimas páginas do último capítulo) dá à perda um sentido de aprendizado. Não podemos recuperar o que se perdeu, mas podemos dar um valor renovado para o que restou. Amor, afinal de contas, salva.

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