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Jornada Amaldiçoada: Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban

Jornada Amaldiçoada: Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban

Gustavo Pereira - 29 de setembro de 2016

A verdade sempre aparece, não importa o tempo que leve ou o preço que cobre. Já disse Abraham Lincoln: “Você pode enganar uma pessoa por muito tempo; algumas por algum tempo; mas não consegue enganar todas por todo o tempo”.

O passado de Harry Potter é obscuro: perdeu os pais mais jovem do que é capaz de lembrar, morou com tios que “tinham esperanças que, se oprimissem Harry o máximo possível, seriam capazes de acabar com a magia que houvesse nele” e descobriu-se mais do que um bruxo, uma celebridade entre seus iguais.

Mas, obviamente, isso ainda não é tudo.

Quando Sirius Black (nome mais genial da série inteira: Sirius é o nome da estrela mais brilhante da constelação de Canis Major) foge de Azkaban, a prisão do mundo bruxo (do hebreu Abbadon, “profundezas do Inferno”), todos deduzem que ele quer matar Harry, completando o serviço que começou 12 anos antes, quando entregou os Potter a Voldemort.

E é claro que ninguém conta isso a Harry.

A História nos ensina a ter cautela. Não foram poucas as ocasiões em que um período traumático foi tão severo para um povo a ponto de, superado, este período ter sido enterrado pelo próprio povo, indisposto a revisitá-lo e entendê-lo. As narrativas fazem tanto sentido que não há porque questioná-las. Um caso real sobre o que estou falando se passou na Alemanha (sempre ela) e foi retratada no filme de 1990 Uma Cidade Sem Passado.

Em lugar de justiça, a narrativa que colocou Black na cadeia trouxe paz à comunidade bruxa que tentava se recuperar da era nefasta de Voldemort. Isso também explica porque tantos de seus seguidores foram aceitos de volta, apesar da explicação de agirem sob influência de maldições não ser exatamente boa. Com o Lorde das Trevas desaparecido “para sempre”, todos se esforçaram ao máximo para esquecer que um dia ele sequer existiu.

Apenas lembrando a todos que existe uma poção chamada Veritaserum, o soro da verdade mais poderoso do mundo, que poderia facilmente elucidar qualquer dúvida sobre quem era ou não partidário de Voldemort. O mundo dos bruxos é mais dado às aparências do que à justiça, e nisso ele é terrivelmente similar ao nosso mundo trouxa.

Dumbledore não gosta dos guardas de Azkaban – disse o Sr. Weasley deprimido. – Nem eu, se você quer saber… mas quando se está lidando com um bruxo como Black, por vezes a gente tem que se aliar com gente que se prefere evitar.

O Caldeirão Furado

– A pessoa não consegue mais se lembrar de quem é depois de algum tempo. E começa a achar que não vale a pena viver. Eu tinha esperança de morrer durante o sono… Quando me soltaram, foi como se eu estivesse renascendo, tudo voltou como uma avalanche, foi a melhor sensação do mundo. E vejam bem, os dementadores não gostaram nada de me deixar sair.

– Mas você era inocente! – exclamou Hermione.

Hagrid riu pelo nariz.

– Você acha que eles se importam com isso? Que nada. Desde que tenham umas centenas de seres humanos trancafiados com eles, para poder sugar toda a felicidade deles, não estão nem aí se alguém é ou não é culpado.

A Firebolt

Este volume é o único da série em que Harry não confronta Voldemort diretamente, mas é o mais revelador sobre as entranhas do poder no mundo mágico. Não apenas pela forma como ele trata seus prisioneiros, mas também (talvez principalmente) pela forma como trata seus desvalidos e desajustados.

Referência clara ao nome do irmão de Rômulo, fundador de Roma, o professor Remo Lupin passou a vida sofrendo de desconfiança, medo e preconceito resultantes da sua condição de lobisomem. Só conseguiu estudar e trabalhar pela bondade – e principalmente, pelo bom senso – de Dumbledore, que nunca o culpou por ser algo que não pediu para ser. Este tipo de caso, no qual a vítima sofre duas vezes, sendo a primeira pela própria condição e a segunda pelo estigma social, me lembrou dos soropositivos, que ainda hoje são vulneráveis no mercado de trabalho.

Fica evidente que os bruxos não tem nenhuma aura especial em torno de si quando, em meio às buscas por Black, o cidadão “de bem” é obrigado a conviver com as criaturas designadas para manter seus presos trancados. Os dementadores (dementar + or: “aquele que faz perder o juízo”) não são criaturas confiáveis, muito menos controláveis. Se alimentam de tudo o que há de bom numa pessoa e a forçam a reviver suas piores experiências. O que difere a maldade criminosa da maldade institucional? E se tais criaturas decidirem não seguir mais ordens e simplesmente atacar inadvertidamente qualquer um?

Eventualmente, isso acaba acontecendo.

Outra que também sofre com prejulgamentos é a professora de Adivinhação, Sibila Trelawney, tão obtusa em seus trejeitos de charlatã que oculta um absurdo índice de acertos em suas profecias, a despeito da má vontade da professora McGonagall.

“À mulher de César não basta ser honesta, tem que parecer honesta”.

A verdade sempre causará incômodos por onde passar. É mais fácil odiar sem entender do que se questionar e descobrir que não há motivo para ódio. Harry passou por este processo para dar um passo adiante em seu amadurecimento. A vida para ele não é simples, mesmo o título da Copa das Casas de Quadribol vem com sofrimento. Mas a verdade também liberta. E, ao saber mais sobre o próprio passado, se torna capaz de projetar um futuro mais honesto. A despeito de qualquer profecia, ainda somos senhores das próprias escolhas.

Sabe, Harry, de certa forma você realmente viu o seu pai ontem à noite… Você o encontrou dentro de si mesmo.

Dumbledore. Novo correio-coruja

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