Ajude este site a continuar gerando conteúdo de qualidade. Desative o AdBlock

Mato Seco em Chamas

Mato Seco em Chamas

Cinema criador de mundos

Wallace Andrioli - 25 de fevereiro de 2023

“para os dominados a questão nunca foi tomar consciência dos mecanismos de dominação, mas criar um corpo votado a outra coisa, que não a dominação.”

(Jacques Rancière)

 

A predileção de Adirley Queirós pelo cinema de gênero, popular, aparece mais uma vez em Mato Seco em Chamas, codirigido por Joana Pimenta (também diretora de fotografia). O filme começa apresentando personagens periféricos e um universo possivelmente distópico, como em Branco Sai, Preto Fica (2013) e Era Uma Vez Brasília (2017). Mas aqui há referências mais específicas, que remetem a algo semelhante a Mad Max: paisagens áridas cruzadas por grupos de motoqueiros, violência desenfreada e o domínio da exploração de petróleo como meio de exercício de contrapoder.

Adirley e Joana logo rarefazem esse caminho inicial, através da hibridização característica do cinema do primeiro. Há toda uma preocupação em mobilizar certos elementos para evocar uma atmosfera de exclusão social temporalmente perene, perfeitamente articulada a um imaginário distópico mas ao mesmo tempo alicerçada num olhar próprio do documentário, direcionado à realidade concreta da periferia do Distrito Federal. A fluidez entre ficcionalização e registro documental alcançada aqui é ainda maior que nos filmes anteriores de Adirley, sobretudo porque a fabulação se dá também em termos realistas, muitas vezes espelhando acontecimentos das vidas das três atrizes principais (Joana Darc Furtado, Andreia Vieira e Léa Alves).

O exercício de criação de um mundo ganha destaque. Mesmo quando a ficção escancarada é interrompida por relatos dessas atrizes/personagens ou pela incorporação de fotografias e da leitura do auto de prisão de uma delas, os diretores se mostram interessados no gesto criativo, na transformação desses eventos em partes da história de Cheetara (Joana Darc) e das gasolineiras. O retorno de Léa à cadeia se torna o mote de encerramento de Mato Seco em Chamas não no sentido da impossibilidade de continuação da feitura fílmica diante da ausência forçada de uma de suas protagonistas, mas da personagem encarcerada que convoca as companheiras de gangue para resgatá-la, situação comum em narrativas de ação/crime.

O filósofo francês Jacques Rancière define o encontro entre arte e política a partir da capacidade que ambas têm de produzir dissenso no tecido sensível da sociedade, de redistribuir o visível e o invisível, os espaços e as competências tidos como naturais. Ao exibir uma enorme força criadora de imaginário, Mato Seco em Chamas evidencia sua dimensão política para além do tema da resistência a uma distopia opressora. Mais que filmar pessoas periféricas, ele incute na imaginação cinematográfica, a desestabilizando e reconfigurando, corpos marginalizados em plena fabulação.

Mato Seco em Chamas também é excepcional na criação de um mundo no sentido apontado pelo crítico americano Tag Gallagher, no clássico texto “Narrativa contra mundo”, de ser um filme que se entranha na memória espectatorial menos pelo encadeamento do enredo que pelas imagens que o compõem. Adirley e Joana se importam com a articulação narrativa mais como gesto fabulador que como contação primorosa de uma história. Daí Mato Seco em Chamas impactar de fato por seus momentos inteiros em si mesmos, pedaços de filme memoráveis pela interação que contêm entre corpos e espaços: Cheetara e Léa no topo de um torre de vigilância, conversando sobre a vida com Brasília ao fundo e uma bomba de extrair petróleo ao lado; Andreia cantando o jingle de sua campanha política num carro de som que rasga a comunidade de Sol Nascente; a comemoração na capital federal da vitória de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2018; o funk no ônibus; o veículo de guerra da polícia em chamas. Mais evocação que narração.

Texto originalmente escrito para nossa cobertura do Festival do Rio 2022. Acompanhe aqui.

Topo ▲