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Michael Mann: diretor-arquiteto e a relação do homem com o espaço em busca do escapismo

Michael Mann: diretor-arquiteto e a relação do homem com o espaço em busca do escapismo

A alienação da realidade em Miami Vice, Caçador de Assassinos, Maratona Final e em outras obras de Mann.

Michel Gutwilen - 13 de julho de 2020

Tudo o que eu sou é o que estou procurando” — Vincent Hannah, em Fogo Contra Fogo.

Nos filmes de Michael Mann, os protagonistas parecem desconectados da realidade, alienados ao mundo. O escapismo obsessivo é o que move esses homens, podendo se confundir com um workaholismo. Contudo, esta fuga se concretiza muito mais no plano mental do que na esfera do real ou do físico. Para tais personagens, escapar não é ir a um lugar, mas sonhar acordado. Almejar tanto uma coisa que todo o resto se torna um borrão. Portanto, o pathos de diversos personagens mannianos está na busca por uma utopia, ou seja, o não-lugar, se for levar a etimologia da palavra ao pé da letra — não confundir com o conceito de Marc Augé sobre não-lugar —. Esse desejo de escape se origina do fato deles estarem presos no meio em que vivem, seja as estruturas institucionais opressoras como os lugares físicos em si (Chiago, Miami, Los Angeles). E se existe essa característica temática marcante na filmografia do cineasta, é porque ele cria um estilo muito próprio para retratar isso.

Eis aqui o grande foco estilístico da mise-en-scène de Michael Mann: através de um jogo de contraste entre o realismo e o onirismo, explorar a relação do homem com o ambiente a sua volta, desbravando fronteiras na maneira como filma o espaço. Não à toa, o teórico Steven Sanders, em um trecho do livro The Philosophy of Michael Mann, usa o termo “diretor-arquiteto”. Porém, sua arquitetura não é como aquela dos expressionistas alemães da década de 20. Afinal, eles construíram cenários estilizados pintados à mão que acompanhavam o pessimismo da época. De modo contrário, Mann não usa do irreal como condição a priori, mas parte do realismo e, posteriormente, o distorce — nunca completamente — sempre em uma linha muito tênue entre o real e o irreal.

Assim sendo, transgredir o espaço e as instituições são partes do núcleo central dos filmes de Mann, o que justifica sua predileção por figuras marginais que roubam do sistema (Profissão: Ladrão, Fogo Contra Fogo, Inimigos Públicos, Hacker). A partir de Ali, o uso da câmera digital foi cada vez mais levado ao limite, não em busca de uma verossimilhança, mas para explorar o estado semi-onírico que tais produções alcançam através de uma fluidez na movimentação, uma representação crua do mundo e uma decupagem cada vez mais livre, representando essa desconexão com a realidade dos protagonistas. De certo modo, isso alcança o seu ápice em Hacker quando a virtualidade do mundo digital se integra a narrativa e processos não-visíveis são imaginados visualmente por Mann, indo na contramão da distorção que ele faz com o real. 

Dito isso, padrões estéticos podem ser encontrados no trabalho de Mann. Frequentemente, personagens estão em primeiro plano enquanto, ao fundo, as luzes desfocadas da cidade completam o quadro. Existe aqui um desnorteamento espacial que remete tanto ao conceito de alienação quanto ao de o não-lugar. De mesmo modo, as cidades de Miami e Los Angeles, respectivamente, se transformam em horizontes luminosos durante trechos de Miami Vice e em Fogo Contra Fogo, enquanto os protagonistas aparecem em maior destaque. Tudo isso pode ser enxergado como uma constante disputa de forças entre meio e indivíduo, de modo que, visualmente, o indivíduo é privilegiado, transformando o espaço em abstração.

Logo em seu primeiro longa metragem (produção para a TV), Maratona Final, já é possível ver como a narrativa é pautada em um jogo de influências entre o indivíduo e o meio. Ambientado em uma prisão, a repressão policial e uma guerra racial entre gangues fazem parte daquele dia-a-dia. Alheio a isso tudo, o único meio de Rain Murphy exercer sua individualidade é através de seu corpo. Sua obsessão consiste em correr no pátio da prisão. Diante dessa premissa, Mann estabelece um grande contraste visual entre as sequências de corrida e os outros momentos. Normalmente, o protagonista aparece por trás de grades, sua sombra se projeta sobre seu corpo e a câmera está fixa. Essa rigidez formal opressiva que corresponde ao próprio sistema prisional é quebrada pelo diretor quando Murphy está correndo na pista. Primeiramente, a câmera acompanha sua velocidade próximo ao seu corpo, fazendo o fundo do plano se tornar praticamente um vazio fora de foco e não um edifício de uma prisão. Outra técnica usada é a câmera lenta que realça cada detalhe do corpo do ator Peter Strauss, em oposição a quando nada se via dele. Para o detento, então, o ato de correr é o seu não-lugar, o único modo de ter controle de si próprio dentro de tal meio opressivo.

Em Caçador de Assassinos, o processo de fuga mental não é encenado através de contrastes, mas da mimesis. O agente do FBI, Will Graham, imita o comportamento dos assassinos que ele está caçando. A principal ideia por volta da narrativa é essa atitude de olhar para fora, se colocar no lugar do outro. Por isso, o olhar e o voyeurismo são importantes na história. Na foto abaixo, Mann decupa a cena criando uma ambivalência entre Graham e Lektor, com os dois lados da grade se parecendo uma cela. Quase como se, entre os dois, houvesse fosse um falso espelho. Neste sentido, há um paralelismo no terceiro ato quando, para capturar Dolarhyde, o agente atravessa a janela da casa que ele está, indicando um rompimento a mimesis. Quando o confronto é resolvido e a refém pergunta ao seu salvador quem ele é, a resposta “Eu sou Will Graham” é muito significativa pois representa uma autoafirmação do eu e a retomada da consciência após esse período de confusão sobre sua própria identidade. Além disso, por ser uma história principalmente observacional, é significante que dois momentos cruciais que conduzem ao terceiro ato sejam resolvidos através dos olhos: Graham consegue uma pista sobre o assassino ao olhar duas fitas de VHS e Dolarhyde decide capturar Reba após vigiá-la saindo com outro homem.

Similarmente, o personagem de Colin Farrell em Miami Vice incorpora dois mundos dentro de si. Da mudança do ambiente policial em a um faz de conta de bandido. Assim como McCauley em Fogo Contra Fogo e John Dillinger em Inimigos Públicos, uma figura  feminina surge como possibilidade de mudança para aqueles homens presos a um único modo de vida. Entre os três, o destino do detetive Sonny Crockett é o mais trágico. A explicação disso está no fato de que os dois ladrões de banco nunca consumaram, de fato a fuga que planejaram. Por outro lado, Sonny e Isabella foram os únicos a cruzar os limites do ilusório, transformando-o em realidade. A partir do ponto em que a lancha parte para Cuba cruzando literalmente o horizonte, parece que um um sonho começa. A utopia se confunde com um lugar factual. A Miami noturna, violenta e nebulosa dá espaço para um ilha ensolarada viva onde o amor acontece. Posteriormente, quando a realidade precisa ser retomada e os mundos devem agora se separar, a dor é gigante para Sonny. Ainda que os destinos de McCauley e Dillinger sejam mais trágicos fisicamente, o mais sentido é o do detetive. O mesmo mar que levou os dois amantes agora os separa e a fronteira nunca mais será cruzada novamente.

Citando o teórico R. Barton Palmer, “os protagonistas de Mann moldam consistentemente seus próprios destinos, escolhem a perda, a destruição ou mesmo a morte em vez de uma rendição ao sistema ou uma revogação de sua verdade pessoal”. Explicado isso, é possível entender porque os finais das obras do diretor são tão agridoces. Quando a tragédia chega, as escolhas dos personagens que levaram até aquele momento são compreensíveis. Dentro das histórias de Mann, a revolução do indivíduo não é externa, com a destruição do sistema, mas interna.

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