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Ari Aster surgiu para o mundo com o ótimo “Hereditário“, que utiliza tanto o terror fantástico quanto a tensão psicológica para tecer um estudo sobre relações familiares e traumas. Apesar de, em certo ponto, haver uma superexposição que acaba encaminhando o filme para uma ideia fechada, há muita qualidade na construção da mise-en-scène de “Hereditário”, de forma que, basicamente, cada frame do filme contribui tanto para a construção da atmosfera quanto para o desenvolvimento narrativo da trama e dos personagens. O novo filme do cineasta americano, “Midsommar: O Mal Não Espera a Noite” (prometo que esta será a única vez em que irei utilizar o péssimo subtítulo brasileiro no texto), também parte de um drama familiar para desenvolver sua narrativa, além de utilizar o folclore e o mito para engrandecer o horror do filme. Entretanto, o “todo” de “Midsommar” acaba reduzindo o terror à sugestão e utilizando-o apenas como ponte para construir uma narrativa de luto, ciclos e transformações.
Diferente de “Hereditário”, porém, “Midsommar” não flerta a todo momento com o fantástico, e mantém sua narrativa com os pés no chão, sempre criando tensão pela iminência de acontecimentos que, mesmo que bizarros, são possíveis de se testemunhar em um mundo material. A fantasia da obra está justamente na forma como Aster – que além de dirigir, roteiriza o filme – relaciona a ideia de ciclos ao terror dos acontecimentos da trama. Até mesmo quando sugere algo fantástico, Aster o faz de forma mais sutil ou inserindo alucinógenos na narrativa. Infelizmente, o desenvolvimento dessas ideias acaba prejudicado por um roteiro que anda em círculos, e parece trabalhar reafirmando as mesmas ideias de forma repetitiva, de forma que a conclusão se torna inevitavelmente óbvia. Parece faltar a Aster a capacidade de expandir e aprofundar os temas propostos, de forma que a belíssima estética seja acompanhada por algo além de uma história básica sobre luto.
Mas se por um lado, o texto decepciona, por outro, a forma do filme merece muitos elogios. Aster brinca com a realidade sem fugir tanto dela. Quando os personagens se aproximam do vilarejo, por exemplo, não há sugestão de uma presença mística ou algo demoníaco que os ronda. Aliás, até há, mas não da forma convencional; não é como se um mal maior e não-humano rondasse os personagens. Em “Midsommar”, o horror é essencialmente humano, e parte sempre de acontecimentos e conflitos que estão intimamente conectados aos dramas pessoais de Dani. Sobre a sugestão da presença mística, ela é feita ao girar-se a câmera e colocá-la de ponta-cabeça, sugerindo que o choque cultural entre pessoas criadas em uma vila no interior da Suécia e os americanos está por vir. Ali, as crenças e expectativas de Dani e cia. são postas em cheque. Essa ideia do conflito, inclusive, está na obra desde os primeiros planos, quando Aster corta bruscamente um canto folclórico com o toque de celular da protagonista – mais uma vez, o tradicional e o moderno se chocando.
Entretanto, esse conflito acaba escanteado no filme, já que Aster o utiliza apenas para chocar o espectador diante dos bizarros acontecimentos que se sucedem ao longo da estadia do grupo no lugar. O foco está mais em explorar como cada personagem reage a essa nova cultura. O antropólogo do grupo, por exemplo, se interessa pelo estudo daquela sociedade de forma profissional, com fins acadêmicos. O mais interessante, todavia, é perceber a aproximação de Dani com os moradores da área. Enquanto, para todos os outros, as bizarrices ali vistas os afastam e despertam o desejo de retorno para a zona segura, Dani, que está em uma fase de transição e de carência, acaba por, aos poucos, se identificar com o local. Dani parece tão atordoada pelo passado recente que está disposta a abraçar algo novo e totalmente alheio à suas origens, mas que ofereça o mínimo de afeto, algo que ela não teve com sua família e muito menos com o péssimo namorado.
“Midsommar” aproxima muito bem a protagonista do vilarejo. Dani está, desde o começo da projeção, em busca de um lar, um porto seguro onde ancorar, tanto por sua insegurança quanto pelos traumas que viveu recentemente. Se, nos braços do namorado, a personagem chora sozinha enquanto é consolada de maneira fria pelo rapaz, quando, durante a viagem, ela tem uma crise, percebe um costume peculiar dos moradores locais: as mulheres ao seu redor copiam seus gritos, como se compartilhassem sua dor e, assim, a ajudassem a superar o momento negativo.
Outro aspecto interessante da narrativa de “Midsommar” é a passividade com que os personagens principais lidam com os acontecimentos da trama. O longa-metragem segue uma estrutura convencional de terror, inserindo personagens em um ambiente aparentemente amistoso que, aos poucos, se revela um tanto quanto macabro. Falta, porém, uma reação mais explosiva e impulsiva que direcione a trama para um conflito. Porém, essa ausência não é um demérito ou defeito; faz parte da ideia de Aster de tratar toda a jornada de Dani como uma alegoria para a superação de seu luto. É uma história de transição de fases da vida, e os personagens parecem jamais estar no controle sobre os acontecimentos, diferenciando-se apenas pela forma como lidam com essas novidades.
Mesmo operando em um terreno menos próximo do terror tradicional do que seu antecessor, que explora o gênero ao máximo em seu catártico clímax – enquanto o novo repete a catarse, mas sem a imersão no gênero –, “Midsommar” acaba repetindo algumas escolhas não tão interessantes, como a citada superexposição. A noção de que sabemos tudo que vai acontecer já surge no primeiro ato do filme, e Aster parece ter poucos recursos (em termos de ideias) para desenvolver algo para além disso. Mesmo que a ideia seja a de apresentar momentos um tanto quanto previsíveis para retratar momentos típicos da jornada humana, Aster parece não saber explorar esses acontecimentos de uma forma que dê alguma profundidade maior a eles.
Mantendo a mesma precisão estética e clima soturno de “Hereditário”, Ari Aster consegue fazer de “Midsommar” um filme com semelhanças “conteudísticas” e climáticas – ambas as obras falam sobre trauma e família e criam, principalmente pela trilha e pelos planos que sugerem algo soturno invisível aos olhos –, mas que apresenta bastantes diferenças. A mais óbvia, por exemplo, é a luz. Enquanto “Hereditário” é um filme extremamente escuro, que é imerso nas sombras em seu clímax, “Midsommar” opera sempre na luz, já que é ambientado em um lugar onde o Sol ilumina por todo o dia, algo que, vale ressaltar, cria uma ideia quase de suspensão do tempo, como se os personagens estivessem em um limbo. Mesmo que muito didático e repetitivo em erros que já existiam em seu antecessor – o roteiro de Aster parece nunca conseguir amadurecer e desenvolver as ideias para além dos estágios iniciais –, “Midsommar” prova que Aster é um dos promissores diretores do atual cenário do cinema de terror, capaz de impressionar pelo visual (principalmente pela visceralidade), mas sem jamais por de lado a ideia de que o grande terror que atormenta seus personagens está dentro deles.