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Por vezes filmes mais mainstream mobilizam em seus enredos referências às similaridades entre as câmeras e as armas de fogo. Em Sniper Americano (2014), por exemplo, Clint Eastwood frequentemente embaralha o olhar da câmera e o do visor de um rifle ou de outros equipamentos militares (como os drones que sobrevoam o Iraque, identificando e eventualmente eliminando inimigos). Constrói, a partir daí, um filme de guerra esteticamente agressivo sobre a transformação de um homem numa máquina de matar.
Não Haverá Mais Noite, de Eléonore Weber, é bem mais radical nesse sentido. A narrativa é toda construída a partir de imagens de câmeras militares, acopladas em helicópteros que sobrevoam o Iraque e o Afeganistão e executam, à distância, pessoas consideradas suspeitas. De terrorismo? De insurgência contra a presença americana? A sensação de aleatoriedade dessas execuções impessoais é absoluta.
Logo no início, a voz over explica o funcionamento dessas câmeras, controladas pelos movimentos dos próprios soldados dentro das aeronaves. Há aqui, portanto, o desvelamento de um processo de desumanização extrema da guerra na contemporaneidade, no sentido de que um lado, o mais forte, não precisa se envolver em combates corpo a corpo. Ele pode permanecer distante e incógnito e atacar de forma repentina e devastadora. Há várias cenas desse tipo em Não Haverá Mais Noite: homens diminutos caminham por uma paisagem e de repente são explodidos pelos tiros que vêm do alto. Terrorismo de Estado em estado bruto. O efeito obtido é de abjeção a esse exercício extremo do poder sobre a vida alheia.
É até verdade que, em alguns momentos, especificamente naqueles em que os sons diegéticos dos disparos e as reações dos militares permanecem nas cenas, Weber estabelece alguma cumplicidade com o olhar dos perpetradores desses atos de violência. Mas Não Haverá Mais Noite é um filme essencialmente interpretativo. Numa era de absolutização das imagens e assunção de poderes que organizam alguma forma de totalitarismo – os helicópteros sempre presentes, com seus olhos que tudo veem; os avanços técnicos que eliminam o caráter protetor da escuridão noturna, tornando todos vulneráveis à ação dos detentores das armas –, Weber aposta na análise como forma de revelação das estruturas de dominação. Daí a centralidade da voz over em Não Haverá Mais Noite: ela descreve, comenta, acrescenta informações e articula um olhar próprio do filme sobre aqueles olhares humanos mecanizados em proveito da destruição.
Aliás, esse entendimento da análise imagética como meio de criação de brechas contestatórias num contexto de sufocamento visual está também no curta-metragem Duas Imagens de Guerra, de João Pedro Faro. Aqui o gesto é até mais arriscado, na medida em que o diretor trabalha com imagens de contextos bastante distintos, igualando-as como reveladoras de uma mesma barbárie que atravessa o século XX e avança pelo XXI. Essa abertura, politicamente radical, ao ensaio fílmico como intervenção no mundo é muito bonita. Não Haverá Mais Noite, por sua vez, é mais rigoroso, tanto na seleção do material que o compõe quanto no tipo de interpretação que propõe. Mas não menos potente.