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Noite

Noite

Paula Gaitán desvela seu olhar próprio acerca da vida noturna

Igor Nolasco - 24 de janeiro de 2021

“Noite” é um dos títulos que figura entre a Mostra Homenagem a Paula Gaitán na edição de 2021 da Mostra de Cinema de Tiradentes. Produzido de maneira minimalista (além de dirigir, a cineasta é também operadora de câmera e editora), o filme parte de um princípio simples – acompanhar uma mulher em meio à noite carioca – para o desenvolvimento de um ensaio experimental sobre sons, texturas, sensações e a noite enquanto personagem.

O longa é uma viagem, e apropriadamente abre com uma citação intertextual ao “2001: Uma Odisseia no Espaço” de Stanley Kubrick, produção que possui, entre seus tantos destaques, uma representação da viagem interespacial, interdimensional e sensorial em um de seus momentos apoteóticos. Aqui, uma sequência do clássico é filmada sendo exibida numa tela, pela câmera-olhar de Gaitán (e o tema “2001” retorna ao filme posteriormente, de maneira similar) enquanto um trecho spoken-word de “Fitter Happier”, faixa do disco “OK Computer”, do grupo Radiohead, é sobreposto às falas do computador de bordo HAL-9000. Logo de início, “Noite” já mostra ao que veio, dado que boa parte do efeito imersivo do longa está nas sobreposições ou justaposições de elementos complementares que ajudam a criar essa atmosfera que define a visão que a autora tem a respeito da noite.

“A noite”, por assim dizer, é assunto de extremo interesse para uma vasta gama de livros, canções, filmes, que se não a tratam como temática principal, a incorporam como ambientação parcial ou total para obras de diversos gêneros e subgêneros. A noite de Paula Gaitán, no entanto, é muito particular. Não se prende a referenciais geográficos, como a literatura de Nelson Rodrigues; não se debruça sobre personagens marginalizados, como o teatro de Plínio Marcos; não se interessa por explorar de maneira satírica e ácida seus ambientes, como o cinema de Rogério Sganzerla. A cineasta trabalha, principalmente, com luz e a falta da mesma. A noite em “Noite” nada mais é do que os lampejos de luz que irrompem em meio à escuridão, e tudo o que vem acompanhado a estes.

E que acompanhamentos seriam esses? Em um trabalho que dá atenção especial ao som, a música é um dos mais chamativos. A personagem principal, vivida por Clara Choveaux (atriz presente em “Exilados do Vulcão”, longa anterior da diretora), que o filme não faz questão de batizar, passeia por entre diferentes espaços que abrigam diferentes tipos de música, da rave embalada por ritmos eletrônicos ao jazz, passando pelo Radiohead presente desde o começo do filme e chegando a uma apresentação de Arrigo Barnabé, curvado sobre um piano em uma energética performance de “Diversões Eletrônicas” (o músico, aliás, está em cartaz na Mostra Tiradentes em dois outros filmes de Paula Gaitán – “Luz nos Trópicos”, como ator, e o inédito “Ostinato”, documentário sobre seu processo criativo).

Em momentos como o da performance de Barnabé, “Noite”, apesar de seu caráter ensaístico e onírico, adquire um caráter quasidocumental, como se a câmera-olhar (ou olho-câmera) gaitaniana capturasse, em meio a seu processo criativo, cenas que de fato se desenrolam em meio à noite de maneira crua e natural. É esse olho-câmera, em verdade, o verdadeiro destaque do filme. A personagem de Clara Choveaux, com seu espírito flanêur, funciona muito mais como um pretexto para a execução do projeto, como um guia para o que acontece em tela. No entanto, é parte fundamental de composições estéticas sobre as quais “Noite” lança mão, de planos que envolvem dança a momentos em que a personagem fecha-se em contemplação introspectiva – o cigarro sempre em mãos, como de praxe em personagens da noite.

O interesse do olho-câmera pela música e o caráter quasidocumental de certos segmentos da produção também se fundem na participação que Ava Rocha, cantora e filha da cineasta, possui ao longo do filme. Vínculo familiar a parte, essa inserção em momento algum soa como algo fora de lugar: Ava é integrada e assimilada pelo conjunto como uma das personagens da noite que aparecem durante os oitenta minutos em que acompanhamos os devaneios de “Noite”.

Por mais que essa concatenação de tantos elementos possa fazer o projeto parecer ambicioso, tudo é executado com a segurança e a autoconsciência com a qual Paula Gaitán vêm tocando seus projetos mais recentes, dos mais simples aos de maior escopo, como o já citado “Luz nos Trópicos” (também dotado de momentos que apostam nesse caráter quasidocumental, mas em uma escala bem ampliada). Se não está entre os trabalhos de maior destaque da autora em meio à homenagem organizada por Tiradentes, possivelmente é um dos melhores títulos a serem utilizados como uma porta de entrada a seu cinema por pessoas ainda não familiarizadas com o mesmo.


Esse texto faz parte de nossa cobertura para a 24ª Mostra de Tiradentes. Para ir até a página principal da cobertura, clique aqui
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