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O Ano do Dragão (1985)

O Ano do Dragão (1985)

O filme perfeito sobre tudo que há de imperfeito

Matheus Fiore - 9 de abril de 2020

Falar sobre o cinema de Michael Cimino não é muito simples. O diretor americano, falecido em 2016, construiu uma filmografia tão rica quanto coesa, na qual todas as obras não só possuem temas que atravessam os filmes, como também são desenvolvidas de maneiras e perspectivas diferentes ao longo dos sete longa-metragens feitos entre 1974 e 1996. Cimino, porém, nunca foi óbvio. Contemplar seu cinema exige ir além de obviedades como analisar posicionamentos de câmera, roteiro ou caçar quaisquer miudezas para criar metáforas mirabolantes na dialética da imagem. O cinema de Michael Cimino tem a imperfeição humana, nossa jornada pela vida e a relação da sociedade com o sonho americano como temas recorrentes, mas sempre através de uma construção formal e estética que exala tais ideias sem as abordar de forma complexa. A beleza está no que é visto, no que é a imagem por si.

O caso de O Ano do Dragão, de 1985, é interessante para analisar a obra de Cimino em sua totalidade. Se toda a filmografia do Michael Cimino busca transformar em imagem o sentimento de completude, de apogeu da vida humana, é em O Ano do Dragão que Cimino traz um personagem que coloca tudo que importa de lado para se dedicar exclusivamente ao profissional, ao sistema onde está inserido. Stanley White (Mickey Rourke) basicamente vive para exercer sua função de “xerife”; é um policial recém-chegado a Chinatown declara guerra à mafia e deseja transformar o lugar em um ambiente livre de corrupção e violência.

É essa característica de Stanley que torna o final de O Ano do Dragão tão trágico. O filme começa e termina com o funeral de um líder da máfia de Chinatown. Mesmo com todos os esforços de White para combater o mundo do crime, esse cosmo é muito maior do que ele e seus feitos individuais – algo reforçado pelas constantes invasões de violência externa em ambientes internos, como quando um jantar entre o protagonista e a repórter Tracy (Adriane) é interrompido por um tiroteio. A engrenagem continua girando e tudo permanece exatamente como está, mudando apenas algumas peças. O trabalho de Stanley até pode ser capaz de derrubar um criminoso importante, mas Cimino sempre reitera que esse criminoso é apenas uma peça em um jogo muito maior e complexo, que não parece jamais estar ao alcance de um único policial e talvez nem ao alcance de toda a força policial, já que é um sistema que se retroalimenta por características essenciais ao ser humano – um cenário típico do cinema noir, vale dizer.

No trajeto de sua cruzada, Stanley perde tudo. Perde sua esposa – assassinada em uma dessas invasões espaciais do filme, quando capangas da máfia entram na casa do protagonista para matar ele e Connie –, perde os amigos, perde o emprego. O único ombro que sobra para ele é o da repórter chinesa por quem se apaixonou. Aliás, sobre a repórter, é bem nítido como o Cimino aborda, esteticamente, os encontros dela com Stanley de forma bem diferente do restante do filme. O Ano do Dragão é quase sempre sujo, violento, vil, mas os encontros do “casal” são cheios de doçura, de afeto, mesmo que esse sentimento seja, de certa forma, acidental. Stanley sequer concebe que está diante de algo especial, já que sua jornada o aliena desses momentos.

Stanley White não consegue sequer entender o que está perdendo até o momento em que finalmente percebe que todo seu esforço foi em vão e a máfia vai continuar existindo, exatamente como já existia na primeira cena do filme. Stanley continua sendo aquele sujeito falho, cheio de defeitos, buscando uma perfeição que não existe em lugar nenhum além de justamente no amor que desenvolve por Tracy. “Eu estou perseguindo algo que não existe. Eu deveria parar. Jesus, eu estou tão cansado”, diz o protagonista em um momento do filme.

O personagem de Mickey Rourke busca o equilíbrio impossível, a perfeição em um mundo essencialmente imperfeito, sem notar que, acidentalmente, esbarra vez ou outra em momentos lúdicos e puramente poéticos pelo caminho. Se a tragédia do fim de Era Uma Vez na América é o fato de David (Robert De Niro) só poder acessar momentos inesquecíveis de sua vida por meio da abstração da realidade, a do fim de O Ano do Dragão é Stanley não enxergar quando esbarra nos grandes momentos de sua vida no meio de sua luta pelo conserto de um mundo essencialmente falho. O Ano do Dragão é um exemplar absoluto das ideias da obra de Michael Cimino, é um filme perfeito sobre a incorrigível imperfeição do mundo.

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