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O Buraco (1998)

O Buraco (1998)

Viva o amor!

Wallace Andrioli - 19 de maio de 2021

Chove o tempo todo na Taipei de O Buraco (1998). Seus protagonistas solitários, nomeados apenas como “homem de cima” (Lee Kang-sheng) e “mulher de baixo” (Yang Kuei-mei), sofrem com as infiltrações e goteiras, decorrentes desse aguaceiro, em apartamentos apertados. Um cenário típico do cinema de Tsai Ming-liang. Mas há algo mais aqui. O filme, realizado em 1997, localiza sua história na virada do milênio e anuncia, através do noticiário que invade os espaços quase sempre vazios, a existência de uma epidemia misteriosa. Os acometidos pela doença adquirem um comportamento semelhante ao das baratas, rastejando pelos cantos, buscando escuridão e umidade.

O “homem de cima” e a “mulher de baixo” estão, portanto, triplamente acossados: pela chuva ininterrupta, pela solidão e pelo vírus, elementos que compõem o clima fortemente distópico de O Buraco. Tsai lida com apenas um deles, a epidemia, como algo destoante de seu naturalismo exacerbado contumaz, espécie de concessão à paranoia típica do final da década de 1990, tempo de insegurança pela proximidade do aguardado e temido ano 2000. Hoje, todos esses elementos soam insuportavelmente realistas.

O Buraco é muito efetivo na explicitação do isolamento como uma sensação onipresente para seus personagens. Não há qualquer representação dos espaços domésticos como minimamente aconchegantes. Os apartamentos, além de decrépitos e mal cuidados, estão sempre tomados pela água, essa força da natureza que, no cinema de Tsai, perturba, desnorteia, incomoda. Assim, a solidão no filme é experimentada como necessariamente desconfortável, já que manifesta em lugares nada acolhedores.

O vírus, nesse sentido, age reforçando o isolamento, o deslocamento social, a propensão à incomunicabilidade já existentes na vida na metrópole. Os homens e mulheres urbanos e atomizados do novo cinema taiwanês, sobretudo nos filmes de Edward Yang e do próprio Tsai, avançam em O Buraco para um novo estágio: se tornam arremedos de insetos, preferem literalmente a escuridão e a solidão à luz e à convivência. O medo do outro ganha aqui uma concretização no risco do contágio, gerador da animalização. Mas quanto de humanidade resta numa existência cujo gregarismo já tinha sido, antes da epidemia, desarticulado pela pós-modernidade?

Tsai se revela então, mais uma vez, um cineasta interessado no isolamento próprio da contemporaneidade, todavia crente no encontro como saída. A opção do diretor por planos abertos e longos indicia essa crença. As escolhas estilísticas ressaltam o vazio em que os protagonistas estão mergulhados, a espera por um eventual preenchimento e, em raros momentos, apontam para a possibilidade de coexistência no mesmo quadro. Como na cena em que ambos se veem pelos corredores do prédio, cada um em seu respectivo andar: o diretor opta pelo campo/contracampo a princípio óbvio, mas os mantém presentes simultaneamente nos dois planos, que estabelecem uma relação de espelhamento.

E o buraco do título, ponto de partida do filme, abre uma brecha para o contato. Visceral, sem qualquer romantização, condizente com a atmosfera lúgubre reinante – numa das primeiras interações do “homem de cima” com a “mulher de baixo”, ele, bêbado, vomita através desse canal criado entre os dois apartamentos – e, ainda assim, possibilitador da descoberta do outro. É, aliás, incrível como Tsai, em meio à sofisticação e complexidade de O Buraco, se permite articular sem nenhuma vergonha várias situações próprias de uma comédia romântica banal, responsáveis por aproximar os protagonistas.

Flerte com códigos de gênero, que se tornam ainda mais intensos nas inusitadas sequências musicais do filme. Elas explicitam sentimentos e desejos da “mulher de baixo”, adicionando camadas numa personagem inicialmente só acessível por seus gestos e ações cotidianas observadas pela câmera impassível de Tsai. Esses breves momentos de O Buraco são raras fagulhas comunicacionais num cinema muito propenso à diluição quase total da narrativa. No entanto, acoplados a um todo fílmico caracterizado majoritariamente pelo registro paciente do ordinário, eles tendem a tornar o estranhamento espectatorial ainda maior.

Então, num certo dia, a “mulher de baixo” acorda e, como o Gregor Samsa de A Metamorfose, percebe que se transformou num pavoroso inseto. Não literalmente: contagiada pelo vírus que circula por Taiwan, ela passa a rastejar pelo apartamento, em busca de um canto escuro para morar e definhar. Mas Tsai se apropria dessa referência kafkiana para propor outros caminhos. Samsa é rejeitado pela família, tratado como um estorvo e condenado a um estado de absoluta solidão. A “mulher de baixo”, por sua vez, já vive nesse estado. O Buraco então oferece a ela o destino oposto: o encontro, a aceitação, o abraço do “homem de cima” que a leva para seu apartamento. O amor como salvação. Viva o amor!

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