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O Caso Evandro

O Caso Evandro

Entre o documentário e a reportagem

Wallace Andrioli - 8 de junho de 2021

A história contada em O Caso Evandro é absolutamente fascinante pelos mistérios que carrega e revoltante por lançar luz sobre características lamentáveis da sociedade brasileira: a violência policial naturalizada, o preconceito religioso, o sensacionalismo da imprensa e os resultados nefastos da combinação de tudo isso. No entanto, ao adaptar o podcast homônimo criado e apresentado por Ivan Mizanzuk, os diretores Aly Muritiba e Michelle Chevrand tomam uma série de decisões estilísticas equivocadas, que enfraquecem bastante uma experiência que poderia ser das mais impactantes do audiovisual brasileiro recente.

A começar pela derivação excessiva em relação ao trabalho de Mizanzuk. Seria impossível, claro, ignorar a existência do podcast, mas Muritiba e Chevrand revelam certa dificuldade de lançar um olhar próprio sobre o caso, tornando Mizanzuk uma espécie de narrador/explicador ocasional. Sempre que os diretores da minissérie acreditam não ter sido capazes de organizar as muitas e por vezes contraditórias informações dessa história intrincada, eles recorrem à presença do jornalista e podcaster como voz de autoridade. O uso de uma versão turbinada da trilha sonora de Felipe Ayres para o podcast é só a coroação dessa dependência limitadora.

Mas o maior problema de O Caso Evandro é a falta de crença no potencial comunicacional do material com que trabalha. As imagens de arquivo riquíssimas e as entrevistas que por vezes contêm falas poderosas são boicotadas por vícios televisivos típicos de quem confunde documentário com algum tipo de reportagem especial exibida no Fantástico. A minissérie abusa de pavorosas encenações em câmera lenta que não acrescentam nada, mas apenas ilustram o narrado (e mesmo o que já foi mostrado em cenas de arquivo, como a comemoração das Abagge no final do julgamento de 1998), e aposta em cortes que visam a dinamizar os depoimentos para a câmera, mas acabam diluindo a força de algumas falas, enquanto outros trechos de entrevistas se repetem, martelando e mastigando informações para o espectador.

O mesmo, aliás, ocorre com algumas das tais encenações: perde-se a conta das vezes em que Muritiba e Chevrand mostram Aldo Abagge tentando acertar um tapa em Diógenes Caetano, os sete acusados entrando na serraria para o suposto ritual satânico ou o reflexo do menino Evandro desaparecendo numa poça d’água.

A dificuldade de articular de maneira clara os elementos da história advém principalmente da tentativa de fazer de O Caso Evandro um resumão do podcast homônimo, enquanto esse último foi construído no percurso de uma investigação conduzida por Mizanzuk e, por isso mesmo, tem uma pegada detetivesca instigante, em que cada nova peça encontrada e apresentada contribui para a criação de um painel muito complexo. Na minissérie, as peças já estão todas dadas desde o início e seus diretores não encontraram uma forma interessante de organizá-las.

O melhor exemplo disso é o uso das fitas com as confissões dos acusados. Na primeira vez que aparecem, num dos episódios iniciais, elas não recebem a atenção devida para que a revelação do material não editado, no final da minissérie, tenha o impacto dramático alcançado por esse momento no podcast. Daí Muritiba e Chevrand tentarem compensar apelando para o dispositivo questionável de colocar alguns dos personagens da história ouvindo e reagindo às fitas. Emerge daí um tom sensacionalista bastante incômodo, considerando o estrago que esse tipo de abordagem causou nas vidas envolvidas no caso.

E aqui vale voltar à descrença dos diretores na força do material utilizado e ao uso equivocado das encenações como decorrência disso. Para quê reconstituir, ainda que de maneira menos ostensiva do que outras passagens da história, as torturas infligidas aos acusados, quando existem relatos por si só muito doloridos do ocorrido? O momento em que Muritiba e Chevrand, priorizando as fartas imagens de arquivo disponíveis, exibem uma reportagem televisiva que registra brevemente o local das sevícias é, sozinho, muito mais impactante do que todas essas encenações estilizadas e pouco úteis para a narrativa.

Restam, para quem acompanhou o podcast e admira o trabalho realizado por Mizanzuk, o prazer quase fetichista da concretização visual de episódios e personagens antes presentes apenas no formato sonoro e a apresentação de alguns poucos materiais novos realmente poderosos, como a entrevista de Celina Abagge (é um acerto dos diretores não cortar o momento de sua interrupção, preservando, na diegese, a integralidade da relação com a entrevistada) e o relato final de João Bossi. Mas esse último ocorre apenas no episódio extra, sobre o caso do desaparecimento do menino Leandro Bossi. É muito pouco.

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