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A tensão entre o impulso autoral de Robert Eggers e a intervenção do estúdio visando a construção de algo mais palatável faz de O Homem do Norte um filme estranhamente bom. Eggers é um diretor reconhecidamente competente na representação de tempos passados em que realismo brutal e horror fantástico se encontram, por meio do registro repetido e frontal de rituais e crenças desestabilizadoras de qualquer lógica moderna. No entanto, O Farol (2019), seu último filme, pecava justamente por “não acontecer”, não conseguir passar desse acúmulo fascinante de gestos e hábitos a uma trama bem articulada de acontecimentos interessantes e estimulantes, produtora de um exemplar do gênero horror verdadeiramente envolvente, ao invés de um que apenas gira em torno da erudição visual e temática de seu realizador.
A inspiração na gesta escandinava que também esteve na base da criação de Hamlet por William Shakespeare empurra O Homem do Norte para um cinema mais preocupado com o enredo, com o encadeamento de eventos dramáticos que constituem um todo coeso e coerente. A intervenção do estúdio provavelmente buscou acentuar esse aspecto, tornando mais fácil a apreensão do filme por uma plateia habituada aos códigos hamletianos, que vão das adaptações mais convencionais da peça de Shakespeare para o cinema a O Rei Leão (1994). Eggers, por outro lado, parece muito mais interessado em filmar os rituais de uma cultura que, no presente, frequentemente ressurge pasteurizada como referência para uma masculinidade tola, que se manifesta em ambientes diversos, inclusive entre grupos supremacistas.
Nesse sentido, é bem impressionante como o diretor se dedica a apresentar esses homens grosseiros e extremamente violentos do norte da Europa medieval completamente mergulhados em rituais extáticos que extrapolam em muito as meras citações de um ou outro deus nórdico comumente presentes em filmes e séries do tipo. Cenas como a do ritual de iniciação do protagonista adolescente, a da dança ao redor da fogueira pouco após o fim do primeiro ato e a do diálogo entre Amleth adulto (Alexander Skarsgård) e um feiticeiro (Ingvar Sigurdsson) que incorpora o espírito de Heimir (Willem Dafoe) explicitam essa dependência do sobrenatural e o apego a práticas religiosas não tão distantes daquelas de grupos étnicos/religiosos considerados inferiores por esses mesmos homens brancos, ontem e hoje.
A violência que atravessa a narrativa de O Homem do Norte também impressiona, sobretudo em seus momentos iniciais. Chama a atenção, por exemplo, a sequência do ataque a um vilarejo no leste da Europa, com assassinatos sumários inclusive de crianças, queimadas vivas numa cabana, o que remete diretamente a uma das passagens mais aterrorizantes do filme soviético Vá e Veja (1985), de Elem Klimov, quando nazistas executam, da mesma forma, centenas de bielorussos. As vítimas do bando do qual Amleth faz parte também são de origem eslava e, por isso, tratadas como “selvagens” que merecem a morte. Essa semelhança não é gratuita, considerando toda a vinculação do nazismo e do neonazismo com tradições pagãs desse período e região (inclusive especificamente o odinismo).
Já o enredo dramático, essa força a princípio cerceadora dos traços mais particulares do estilo de Eggers, apesar de seguir por caminhos esperados, funciona muito bem como organizador do caos grandiloquente no qual o diretor poderia facilmente se afundar. Eggers não é Michael Cimino, mestre do registro exaustivo de festas, cerimônias e outras manifestações culturais em obras ficcionais. Tampouco tem o tino antropológico de um Jean Rouch, no âmbito do documentário. O fato de O Homem do Norte conseguir transitar dignamente por esse tipo de evento ritualístico sem deixar de ser um épico bastante competente e empolgante faz lembrar, apesar de todas as especificidades de cada caso, O Amuleto de Ogum (1974), de Nelson Pereira dos Santos, obra-prima que também promove uma muito bem-sucedida mistura de um gênero cinematográfico (o policial) com uma visão de mundo embasada em crenças religiosas (da umbanda). A grande diferença é que a autoria de Nelson em O Amuleto de Ogum permanece intacta do início ao fim.