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‘O Irlandês’ expõe as principais deficiências da crítica brasileira

‘O Irlandês’ expõe as principais deficiências da crítica brasileira

Nós não temos nível para analisar Scorsese

Gustavo Pereira - 1 de dezembro de 2019

Assisti a “O Irlandês” neste fim de semana. Acho que meu colega de veículo Matheus Fiore foi cirúrgico em sua crítica. Para que almas mesquinhas não me acusem de publicar um artigo para promover o meu próprio site, também uso este primeiro parágrafo para destacar a EXCELENTE (em caixa alta mesmo) análise feita pelo Fábio Rockenbach para a Revista Moviement. São dois textos que não apenas analisam o filme de Martin Scorsese, mas o contextualizam dentro da carreira do diretor e aproveitam as suas escolhas técnicas e estéticas para transmitir ao leitor conhecimento teórico sobre Cinema.

O Irlandês The Irishman Netflix Martin Scorsese

Mas estas honrosas exceções não podem mascarar uma verdade inconveniente: a crítica cinematográfica brasileira do “mainstream” – aquela que aparece nas duas primeiras páginas de resultados do Google quando pesquisamos “Nome do Filme crítica” – não tem nível para analisar um filme como “O Irlandês”. E essa falta de nível, aliada a uma falta de interesse gritante em conquistá-lo, gera uma reação em cadeia que explica muito o buraco em que nos encontramos.

Mas talvez seja necessário dar um passo atrás antes de dar dois pra frente…

O papel do crítico de cinema

Este é um tema complexo. O Plano Aberto passou mais de uma hora discutindo isso em podcast. Poderíamos ter uma série de podcasts apenas sobre o papel do crítico no mundo digital, onde o acesso a filmes e séries é ilimitado e gratuito (excluir a pirataria dessa conta é ingenuidade). Numa definição simplista, fiquemos assim: o papel do crítico é fugir do óbvio. Mas como se foge do óbvio?

Para manter este artigo num tamanho humano, vamos reduzir a produção cinematográfica em dois grandes grupos: de um lado, as superproduções às quais todo mundo assiste; do outro, filmes menores, de “nicho”. Para cada um dos dois, há uma abordagem “não-óbvia” mais adequada.

Falar de filmes “de nicho” é mais fácil. Basta ao crítico prestar atenção ao que acontece no seu entorno e ver filmes que não vão arrastar multidões para o cinema, mas que possuem valores dignos da atenção do público. Nesse cenário, o crítico adota o papel de curador, algo que os mais antigos podem associar ao “cara da locadora”, aquele profissional saudoso que via nossa ficha – de papel! – com os últimos filmes alugados e indicava algo totalmente inesperado, mas que nos abria um campo novo de possibilidades. Como o algoritmo da Netflix, mas mais legal.

Fugir do óbvio em blockbusters é difícil. É olhar para “Vingadores” – “Guerra Infinita” e “Ultimato” – e analisá-lo como o embate entre duas formas antagônicas de paternidade. Ou apontar os paralelismos entre “Logan”, a despedida de Hugh Jackman do personagem que o consagrou, e “Filhos da Esperança”, uma joia quase perdida de Alfonso Cuarón. Envolve um conhecimento real da profissão. Porque não é apenas necessário saber o quê, mas como dizer. De que forma “mergulhar de cabeça” sem assustar o leitor.

O Irlandês The Irishman Netflix Martin Scorsese

“O Irlandês” é um caso curioso, pois funde estas duas categorias.

“O Irlandês” é um evento

Copa do Mundo. Olimpíadas. Rock in Rio. Eleições presidenciais. Estes são eventos que param um país. Seja pela sazonalidade, pela cobertura ostensiva da mídia, ou mesmo pelo impacto que estes eventos causam nas vidas dos envolvidos, até pessoas que não são particularmente interessadas em esportes, música ou política param e prestam atenção. Este é o momento em que nós, produtores de conteúdo amantes deste mundo, temos uma audiência nova, incomum, disposta a nos ouvir.

O Irlandês The Irishman Netflix Martin Scorsese

Quando Martin Scorsese reúne Robert De Niro, Joe Pesci e Al Pacino para um filme de máfia distribuído pela Netflix, estamos falando de um evento, assim como um filme dos “Vingadores” (é impossível fugir da piada). Porque as “marcas” Scorsese, De Niro, Pesci e Pacino são reconhecidas por todos, da mesma maneira que a marca Marvel o é. Nesse momento, o espectador que faz Adam Sandler ser o ator mais rentável do cinema mundial, que não está nem aí para as inconsistências narrativas de “Velozes e Furiosos” e que maratona série pelo celular, o espectador médio, vai ouvir o crítico que passa o ano “pregando para convertidos”.

É a oportunidade de renovar as bases, apresentar um grande diretor para novos públicos e elevar o nível de cobrança deste público para o Cinema. “OK, você conhece filmes com narração em off, mas veja como o Scorsese a usa muito melhor“. “Qualquer um pode ser violento mostrando um tiro na cabeça, mas veja como Scorsese é violento filmando flores e deixando apenas o som do tiro preencher sua mente com a violência que você não vê“. E por aí vai.

O problema não é a discordância, mas o discurso vazio

Acho “O Irlandês” um dos grandes filmes de 2019. Talvez o grande filme de 2019. Quase a unanimidade das críticas que li também. Voltando aos dois textos que mencionei na abertura deste artigo, discordo pontualmente de duas teses neles contidas: Fiore define o filme como uma espécie de “epitáfio em vida” de Scorsese, enquanto Rockenbach associa as portas em “O Irlandês” a vida, morte e fuga. Pessoalmente, prefiro analisar se uma obra é ou não o “epitáfio em vida” de um diretor após a sua morte. E analiso as portas de “O Irlandês” como conexões. Enquanto a porta do escritório de Michael Corleone é fechada no fim de “O Poderoso Chefão”, simbolicamente excluindo Kay da vida do protagonista, Frank deixa a porta de seu quarto entreaberta, implorando que alguém – qualquer um – entre em sua vida.

Mas é inegável que os dois críticos baseiam suas teses em argumentos. Eu posso entender como chegaram às suas conclusões. E isso é ótimo, porque o conhecimento nasce do contraditório. Da mesma forma, defendo teses que podem ou não ter concordância dos leitores (como minha comparação entre Thanos e Malthus).

Quando abro uma crítica que usa seus dois primeiros parágrafos para enumerar os filmes de Martin Scorsese e o número de vezes em que o elenco já trabalhou com o diretor (informações que qualquer um encontra na Wikipédia), os parágrafos intermediários para resumir a sinopse (algo dispensável para quem já viu o filme) e encerra com “obra-prima” (um termo que, sem justificativas, não passa de palavras ao vento), me coloco no lugar daquele espectador médio. Isso acrescenta algo à sua leitura do filme? E quando ele acessa duas, três, dez análises do filme e isso é tudo o que encontra? Terá este leitor a percepção de que a função do crítico é relevante?

Logo após a goleada de 7 a 1 sofrida pelo Brasil contra a Alemanha na Copa de 2014, o jornalista Mauro Cezar Pereira disse uma frase que ecoa na minha cabeça desde então: “o futebol brasileiro precisa ser repensado de cabo a rabo”. Após esse verdadeiro show de horrores da crítica “especializada”, nós deveríamos repensar nossa profissão de cabo a rabo. Estudar mais. Conversar mais entre nós e buscar formas de crescermos juntos, como YouTubers americanos fizeram com a playlist “One Marvelous Scene“, onde quase 200 canais usaram o MCU para falar sobre Teoria do Cinema. Fugir das frases de efeito e abraçar a substância.

Do contrário, seremos nós a escrever nossos epitáfios em vida.

 

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