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O maior risco corrido por Steven Spielberg na realização de Os Fabelmans era o da atribuição excessiva de autoimportância, numa narrativa sobre sua própria adolescência organizada teleologicamente, com cada pequeno momento do passado apontando para algum grande feito artístico futuro. Trata-se, afinal, daquele que é provavelmente o mais bem-sucedido diretor da história do cinema. O início do filme até sinaliza nesse sentido, quando lida com a versão infantil do protagonista Sam Fabelman (nessa fase interpretado por Mateo Zoryan), mas logo outros caminhos são abertos e trilhados por Spielberg.
Aos poucos, todo o peso emocional e a delicadeza chorosa que parecem anunciadas nas primeiras cenas de Os Fabelmans vão sendo matizados por uma leveza e um senso de humor adoráveis e até inesperados. O diretor de fato se diverte nessa mirada para seu passado, o que é acentuado na parte final do filme, quando Sam (aqui já vivido pelo ótimo Gabriel LaBelle) e sua família estão morando na California. Os momentos do personagem com a namorada Monica (Chloe East), por exemplo, sobretudo aqueles em que falam de judaísmo e cristianismo, são abertamente cômicos, debochados.
Mas é na sequência derradeira que Spielberg escancara essa sua disposição para não se levar tão a sério enquanto personagem de si mesmo. Para além do brilhantismo desse trecho – que não deixa de funcionar autonomamente em relação à narrativa, quase como um curta dentro de Os Fabelmans sobre o encontro entre o maior diretor da Hollywood clássica e um jovem aspirante à profissão – e da presença inacreditável de David Lynch interpretando John Ford, é muito inusitado que um profissional do tamanho de Spielberg opte por encerrar esse filme (com toda a aura de ser sua autobiografia) numa piada, numa gag visual. Lembra um pouco o que Clint Eastwood fez no final de Sully (2016), mas Os Fabelmans é um filme bem maior que essa despretensiosa (e ótima) historieta de um herói americano semianônimo (uma das várias dirigidas por Eastwood na atual fase de sua carreira).
Outra escolha de Spielberg que permite contornar o risco inicial é a de reposicionar o cinema na narrativa. O aprendizado gradual, pelo protagonista, de elementos da linguagem cinematográfica não leva à esperada prenunciação de um gênio, mas a um uso cotidiano do fazer fílmico para resolver questões práticas e, no limite, entender aspectos do mundo. É por meio da realização de filmes que Sam consegue, por exemplo, ajustar seu arco de relações no ambiente hostil da escola californiana e descobrir o segredo de sua mãe (Michelle Williams, em grande atuação).
Isso é importante porque o personagem central de Os Fabelmans vive um embate entre a racionalidade utilitária de seu pai (Paul Dano) e o lirismo materno, tendendo mais para o segundo quando passa a investir na paixão pelo cinema. Mas Spielberg chega a uma síntese interessante desses opostos, pois para Sam os filmes se tornam mais que uma maneira de exprimir sua sensibilidade artística: são também instrumentos de intervenção na realidade, visando a manejá-la ao seu favor.
É possível pensar a própria obra do diretor dentro dessa perspectiva, já que seu reconhecido sentimentalismo sempre foi muito condicionado por uma crença irrestrita na capacidade de manipulação formal das emoções espectatoriais, ou seja, Spielberg tem uma concepção calculista da arte. Em Os Fabelmans, isso evolui para o sacrifício de qualquer amarração melodramática em prol de um final que comenta, verbal e visualmente, a própria criação da imagem fílmica. Esse talvez seja o encerramento mais ousado e bonito (pela homenagem ao cinema, claro, mas também pela leveza contagiante) de um filme de Spielberg.