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Existe uma tensão na imagem fotográfica, o que é permitido se tornar visível encontra-se em um ponto específico dentro de uma variante de exposição luminosa. Há duas formas de tornar um objeto invisível dentro dessa imagem, pela superexposição ou pela subexposição, um campo de hiper visibilidade em que a luz ofusca os contornos do mundo e um campo de baixa visibilidade onde a sombra oblitera essas mesmas diferenças perceptíveis. Pressão Atmosférica encontra-se no centro dessa tensão figurativa. Seus mecanismos tornam um mundo visível na mesma medida em que obscurecem suas nuances. Cada imagem do filme de Peter Treherne guarda um mistério, uma ambiguidade sobre o estado das coisas que é sentida, nos chega pelas sensações, pela pretensão abertamente atmosférica do filme, e que nos inquieta. A figura do meteorologista naquela fazenda, tentando compreender a mudança abrupta do tempo, não é tão diferente da nossa.
Em um certo sentido, essas imagens nos aparecem com uma certa familiaridade, Treherne parece o tempo todo remeter ao cinema metafísico de Béla Tarr, tanto quanto às locações da fazenda, às imagens do gado ocupando aquele espaço, ao preto e branco e ao tempo dilatado dos planos. Mas o filme parece menos preocupado em ser um trabalho de citação ou referência quanto se propõe em ser uma continuidade dos processos metafísicos desse cinema. O clima, as variações do tempo e a presença dos animais deixam de ser elementos secundários, alusões ou elementos de textura e de relação majoritariamente afetiva, para estarem no centro das inquietações do filme de Treherne. A locação da fazenda traz a tona a relação do homem com a natureza em todo o mistério que essa relação implica.
Quando acompanhamos a ordenha mecânica das vacas no início, escutamos ao fundo o som da bomba enquanto o gado é posicionado. Em outro plano logo em seguida vemos a bomba e o leite ordenhado sendo tragado para o recipiente, o som que escutávamos antes agora está mais audível, temos mais consciência do mecanismo da ordenha. Entre um plano e outro nós vamos de um campo sugestivo para um espaço onde o objeto da sugestão se faz presente. O que é assombroso em Pressão Atmosférica é o reconhecimento de que nem todas as nossas sensações e inquietações podem ter um lastro reconhecível dentro de nossos mecanismos de percepção. Estamos aqui em plena fenomenologia, o mistério da natureza é sentido pela mudança abrupta do tempo, mas o meteorologista passa o filme a analisar dados, fazer medições e nunca temos certeza se ele chegará a alguma conclusão sobre essas investigações. A própria tempestade que acarreta as variações intrigantes no tempo é vista por intermédio de fotografias, instantes paralisados, privados da dimensão temporal que pauta o dispositivo principal do filme. São limitações que poderíamos aplicar também ao preto e branco, a ausência das matizes e das possíveis nuances que ela traria para a base realista do filme.
Treherne constantemente nos evidencia as limitações de seu escopo. Ele seleciona enquadramentos específicos do cenário da fazenda para que possamos acompanhar as variações de visibilidade em função das variações do tempo. Uma série de vistas que por vezes tem várias áreas imersas na sombra, como se as diferenças em uma seção do quadro tivessem sido apagadas com nanquim, e em outras horas encontra-se com mais detalhes dada uma luz mais difusa ou incidente sobre certas áreas. Em um plano excepcional vemos essa variação se dando na nossa frente, quando por um breve instante as nuvens se abrem e vemos o sol irradiar sobre um celeiro e sobre um chão enlameado revelando seus detalhes momentaneamente. O filme localiza-se nos limites do figurativo em uma base realista, pauta-se em uma certa impossibilidade de se fazer realismo, de se apreender as coisas sem nenhuma perda e, ultimamente, de uma frustração humana em sua relativa incapacidade de controle.
A presença do meteorologista é emblemática aos entraves abordados pelo filme. Vemos o homem em um ambiente que expressa uma vontade de apreensão e domínio da natureza, a ordenha e a domesticação animal surgem como a concretização dessa vontade. Mas ao mesmo tempo vemos essa mesma natureza impondo seus desafios, desafios que não podem ser plenamente explicados pelas ciências do homem, seus paradigmas e suas limitações de escopo. Essa miséria de nossos métodos é por extensão uma miséria ainda mais essencial de nossa própria natureza perceptiva. Em um dos poucos momentos alegóricos do filme, o balão meteorológico lançado pelo meteorologista é visto no chão enlameado e pisoteado pelo gado que escapa do celeiro, como que vencido. Talvez mais do que um filme de meras sugestões, Peter Treherne encara com um misto de fascinação e terror um universo que é ao mesmo tempo sentido em seus enlevos, texturas e vibrações, e que a todo tempo desafia nossas tentativas de elucidação.