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Operação Red Sparrow: um estudo sobre estereótipos

Operação Red Sparrow: um estudo sobre estereótipos

Gustavo Pereira - 1 de março de 2018

Para ler a crítica de “Operação Red Sparrow”, clique aqui. Este artigo não contém revelações sobre o enredo (spoilers).

Operação Red Sparrow Jennifer Lawrence

Jennifer Lawrence interpretando uma espiã russa: desceu quadrado

É dever de um contador de histórias criar personagens e situações agradáveis. Não por serem admiráveis, mas por serem interpretados pelo espectador como factíveis. O público aceita de bom grado passar cerca de duas horas assistindo a uma mentira, desde que esta mentira se pareça com uma verdade. O Cinema, desde os tempos de Méliès, é um ilusionismo.

Existe uma regra não-dita, mas facilmente apurável, sobre o equilíbrio entre trama, ambientação e personagens: bons filmes têm, no máximo, dois destes itens complexos, um sendo necessariamente mais simples. Não se deve confundir “simples” com “simplório” e nem “complexo” com “pretensioso”. Os elementos simples não devem ser toscos, sem refinamento, na mesma medida que os complexos precisam seguir à lógica interna da história. É uma forma dos realizadores, e nesta análise divido a responsabilidade entre roteirista e diretor, “suavizarem” sua obra e canalizarem a atenção da audiência para o que realmente lhes é importante: a situação ou as pessoas que nela estão.

Operação Red Sparrow Jennifer Lawrence

A primeira informação sobre a protagonista russa é sua profissão (bailarina do Teatro Bolshoi): surpreso por ela não ter bebido uma dose de vodka antes da sua apresentação.

“Operação Red Sparrow”, com direção de Francis Lawrence (“Jogos Vorazes: A Esperança”) e elenco estrelado (Jennifer Lawrence, Joel Edgerton, Charlotte Rampling e Jeremy Irons, para citar os principais nomes), é uma trama simples de espionagem, num ambiente familiar para filmes deste gênero, o Leste Europeu. Seria natural que o filme focasse, portanto, em seus personagens. E é aí que o filme de Lawrence – o diretor – derrapa de forma irreversível. Todos os personagens de “Red Sparrow” são caricaturas. Além disso, as soluções que o roteiro de Justin Haythe encontra para resolver conflitos seriam clichês inadequados até em filmes lançados durante a Guerra Fria.

Não é um problema não oferecer nada de desafiador, de “ilusionismo” ao espectador. Contudo, um filme tão preso ao convencional precisa de personagens e situações associáveis a quem o assiste. Em resumo: o público sabe estar vendo um filme, mas não pode ser lembrado disso. Do contrário, se desconectará dele e deixará de se importar. O beijo da morte em qualquer obra de ficção.

“Jurassic Park”: um exemplo de sucesso

O jovem clássico de Steven Spielberg se passa num ambiente incomum (uma ilha na América Central, um “paraíso intocado”) e tem uma trama original (cientistas descobrem como clonar dinossauros e um empresário projeta um parque temático para exibi-los). O que faz o filme dialogar com novos públicos até hoje, entretanto, não é a plausibilidade interna de sua premissa. É a verossimilhança de seus personagens. Poderia fazer uma análise detalhada de todos os personagens de “Jurassic Park” (se você acha que eu deveria fazer, me avise nos comentários), mas para efeitos comparativos fiquemos com o protagonista Alan Grant (Sam Neill) em três momentos-chave.

Em sua cena introdutória, Alan demonstra o desconforto e a incapacidade de lidar com crianças, chegando a comentar que dinossauros lhe assustariam menos. Quando chega à Ilha Nublar, o jovem Tim (Joseph Mazzello) o importuna mais do que tudo, um reforço da premissa estabelecida na primeira cena. Mas, quando as coisas dão errado, Grant se vê obrigado a salvar Tim e sua irmã Lex (Ariana Richards) das ameaças do parque e conduzi-los de volta à segurança. Nesta jornada, Alan descobre que dinossauros são mais assustadores do que crianças e que, contra suas próprias expectativas, até gosta delas.

Jurassic Park Sam Neill

Alan Grant e seus “filhos forçados”

“Jurassic Park” é um filme tão bom porque, durante a fuga dos dinossauros soltos numa floresta tropical, conta uma história simples com a qual o público se identifica. É a jornada de um workaholic solitário descobrindo a vocação para pai.

“Red Sparrow”: a trilogia do erro

Quando falei de clichês, me referi a escolhas que qualquer um, com conhecimento superficial do tema, poderia sugerir. A imagem da Rússia no imaginário coletivo do Ocidente ainda tem muito da antiga União Soviética, como se o comunismo ainda fosse o regime político vigente e “globalização” fosse uma palavra proibida no vocabulário nacional. O filme se passa no século XXI, mas não parece. Não há informações novas sobre a atual Rússia, que parece parada no tempo. Não há, portanto, informações que engajem o espectador na história. Ele começa, naturalmente, a buscar novos elementos para focar sua atenção.

Operação Red Sparrow Jennifer Lawrence

Encontre o russo

O que não encontra, pois esta visão deturpada da Rússia é reforçada na escalação do elenco. Jennifer Lawrence, que interpreta a protagonista Dominika Egorova, é estadunidense; Jeremy Irons e Charlotte Rampling, britânicos; Matthias Schoenaerts, o tio de Dominika, belga; Ciarán Hinds, importante oficial do governo russo, irlandês. Não existe um personagem russo de destaque no filme que seja interpretado por um russo. Entre eles, conversam em inglês, com sotaques forçados que aparecem e desaparecem sem critério. Comparado a diretores como Clint Eastwood, que dirigiu “Cartas de Iwo Jima” com um tradutor intermediando sua comunicação com o elenco, todo composto por japoneses, “Red Sparrow” fica ainda mais pálido. O espectador nunca “sente” a Rússia num filme… sobre a Rússia.

Fechando a “tríplice coroa”, o filme aposta em soluções maniqueístas para justificar as escolhas dos personagens. A própria concepção do grupo Red Sparrow é, em si, um estereótipo de baixeza moral que o filme relega exclusivamente à Rússia, como se os Estados Unidos operassem sua política internacional montados em cavalos brancos e vestidos com armaduras reluzentes. Uma história em que a protagonista transita entre as duas agências de espionagem, esse antagonismo tão escancarado de “lado bom” e “lado ruim” esvazia qualquer conflito que surge, pois não há margem para dualidade. “Red Sparrow” escolhe um “mocinho” e morre abraçado a ele.

Elementos externos

“Red Sparrow” é distribuído pela Fox, até recentemente propriedade de Rupert Murdoch, um notório defensor do governo de Donald Trump. Se falamos aqui que filmes como A Forma da ÁguaStar Wars poderiam ser interpretados como respostas à administração Trump, seria injusto não pensar no peso que o escândalo da alegada participação russa nas eleições presidenciais norte-americanas de 2016 pode ter tido na concepção ideológica do filme de Francis Lawrence.

Operação Red Sparrow Fox Rupert Murdoch

Murdoch, quando lembra que a Disney pagou 52 bilhões de dólares pela Fox.

A vilanização do país comandado por Vladimir Putin, aliada à nobreza superlativa dos Estados Unidos, moldam um discurso de soberania e mesmo controle ianque sobre os velhos rivais da Guerra Fria. É muito forte o viés politizado do filme, algo que pode ou não ser ignorado. Por vermos o contexto histórico de fora, talvez seja mais fácil para o público brasileiro interpretar o filme contido em si próprio. Mas talvez, para os conterrâneos do Tio Sam, “Red Sparrow” soe tão pró-Trump quanto Aquarius foi anti-Temer por aqui.

Seja como for, “Red Sparrow” é um filme sobre a Rússia que não tem russos no elenco, retrata o país com no mínimo 40 anos de atraso histórico, traz personagens rasos como uma folha de papel e uma história com reviravoltas pautadas em lugares-comuns. Parece uma postagem de rede social feita por um adolescente que idealiza os Estados Unidos como uma Disney gigante.

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