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Num breve momento de Regra 34, quando a protagonista Simone (Sol Miranda) conversa com uma amiga pela internet, é possível ver na estante dessa última um exemplar do livro Cinema Explícito, de Rodrigo Gerace. Em tempos de moralismo disseminado inclusive entre audiências progressistas (vide a discussão recente sobre serviços de streaming disponibilizarem a opção de pular cenas de sexo), é bom encontrar um filme que referencie um trabalho acadêmico como o de Gerace, dedicado à longa história da representação cinematográfica da sexualidade, enquanto lida de maneira aberta com o desejo e abraça aparentes contradições no comportamento de sua personagem central.
Simone, afinal, é uma defensora pública que trabalha diretamente com casos de violência doméstica e, ao mesmo tempo, como camgirl. Na vida íntima, ela pratica uma sexualidade livre (num “trisal”) e se interessa cada vez mais por BDSM. Controle e exercício da violência, componentes presentes nas histórias de mulheres vítimas de seus maridos, reaparecem, mas em chave invertida, na manifestação do desejo da protagonista. Aqui um acerto importante: a diretora e roteirista Julia Murat jamais estabelece uma relação causal entre os relatos ouvidos por Simone na Defensoria e a intensificação de sua vontade de investir em certas práticas sexuais. Não há qualquer espelhamento possível, mas sim complexidade na apresentação de facetas distintas de uma mesma mulher. Afinal, em Regra 34 a violência doméstica e o BDSM são separados pelo abismo do consentimento.
Mesmo reconhecendo isso, é interessante como Murat não idealiza as escolhas da protagonista, trazendo para o enredo a dimensão de risco que elas carregam. A cena final do filme coroa essa postura, a partir do investimento num clima de suspense como parte dessa busca constante de Simone por atender aos seus desejos. Esse é o componente que melhor funciona em Regra 34, sobretudo por concretizar uma relação de contraponto, essa sim do interesse de Murat, entre as noções de segurança (geralmente associada ao espaço doméstico, a certo recalque de vontades recônditas, mas frontalmente desconstruída pela violência de maridos contra suas esposas) e insegurança (a princípio própria da fuga de padrões normativos, mas tratada aqui como consequência inevitável da vida).
O que falta a Regra 34 é rigor no encadeamento narrativo e na condução da encenação. Murat filia seu filme a um realismo frouxo muito característico de certo cinema independente brasileiro contemporâneo, se dedicando em muitas cenas a mostrar ações prosaicas de seus personagens que pouco acrescentam à trama nem lhes dão maior densidade, e que também passam longe de qualquer sofisticação na mise-en-scène. A diretora perde, assim, a chance de se aprofundar mais na sensação de risco iminente, ao mesmo tempo amedrontadora e excitante para a protagonista, e que resta latente na narrativa, sempre prestes a explodir. Há no subterrâneo de Regra 34 um grande filme esperando para acontecer.
Texto originalmente escrito para nossa cobertura do Festival do Rio 2022. Acompanhe aqui.