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Retratos Fantasmas

Retratos Fantasmas

Filme de assombração

Wallace Andrioli - 23 de agosto de 2023

Na primeira parte de Retratos Fantasmas, o diretor Kleber Mendonça Filho apresenta por meio de imagens de arquivo a figura de sua mãe, uma historiadora falecida há mais de 30 anos. Ele exibe cenas recém-descobertas dela numa entrevista para a TV sobre seu trabalho com História Oral, e, na condição de narrador, comenta que, apesar de aparentemente estar falando de metodologia ao explorar essas cenas do passado, o assunto em questão é o amor. Esse é de fato o sentimento que move o filme: amor pela mãe e por sua memória, pelo Recife, pelos cinemas de rua.

Só que Retratos Fantasmas é também sobre metodologia. Kleber se deixa filmar algumas vezes pesquisando documentos no Arquivo Público de Pernambuco, como que dando continuidade ao ofício materno: ele não é historiador de formação, mas constrói aqui, através do encontro de imagens de diferentes procedências (muitas produzidas pelo próprio diretor, outras vindas de filmes alheios, além de inúmeras fotografias anônimas) com uma narração pessoal, em primeira pessoa, uma espécie de História Oral-Audiovisual do Recife e de seus cinemas, mas, sobretudo, uma rememoração de si mesmo. Retratos Fantasmas é bastante autorreferencial, marcado pela retomada não só de vídeos caseiros da juventude de Kleber, como também de vários de seus curtas e longas. Há um esforço de exegese do próprio cinema do diretor, a partir da explicitação de inspirações: as pessoas, os espaços da cidade, os filmes vistos.

E, na origem de tudo, a mãe. A memória da mãe, a saudade da mãe, a mãe como fantasma que aponta caminhos. Como No Intenso Agora (2017), de João Moreira Salles, Retratos Fantasmas articula o público e o privado por meio de imagens de arquivo. Ambos os filmes encontram dificuldades para produzir um todo minimamente coeso com o material vasto e os temas diversos que mobilizam e têm nas respectivas figuras maternas um norte, uma força agregadora que sintetiza os interesses de cada narrativa. No caso do documentário de Salles, o registro da felicidade extrema que precede a melancolia; no de Kleber, certa noção de fantasmagoria que toma a ausência presentificada dessa mulher (a entrevista encontrada, a obra na casa filmada e depois tão importante no seu cinema) para abarcar toda uma compreensão sobre as imagens e os espaços.

Filmes de assombração costumam partir da premissa de um ou mais espíritos perseguindo os vivos em lugares que habitavam antes da morte. Num outro momento do primeiro segmento de Retratos Fantasmas, o diretor-narrador faz referência à fotografia de um possível fantasma tirada por acaso em sua casa, para logo depois mostrá-la – cena assustadora, que caberia bem em qualquer grande filme de horror. Kleber apresenta inicialmente essa referência literal ao gênero, mas logo amplia sua compreensão de fantasmagoria, incluindo os cinemas de rua, cada vez mais abandonados, esvaziados, esquecidos, tornados não-lugares, e os próprios registros imagéticos, fragmentos do mundo preenchidos por pessoas, ações, lugares e temporalidades já mortas.

Esse movimento feito pelo filme é uma ótima sacada considerando que o cinema do diretor frequentemente lida com fantasmas em ambos os sentidos: os meninos que rondam em O Som ao Redor (2012), a empregada doméstica de outrora em Aquarius (2016), a menina do banheiro em A Menina do Algodão (2002); mas também o cinema abandonado e as casas e ruas do passado que ressurgem num flash de O Som ao Redor, a cômoda da tia e as fotografias de família em Aquarius, a memorabilia do cangaço em Bacurau (2019). Aqui, portanto, Kleber reforça os vínculos entre Retratos Fantasmas e seus trabalhos pregressos até mais que ao citar vários deles na narrativa do documentário. E explora ainda uma terceira concepção de fantasmagoria, que trata essas assombrações do passado não como figuras ou lugares amedrontadores, incômodos para os vivos do presente, mas portadores de memórias, revelações, afetos esquecidos e direcionamentos de para onde seguir. Como o espírito apaixonado de Ghost – Do Outro Lado da Vida (1990), cujo anúncio da exibição num letreiro de cinema Kleber flagra em certo momento. Filme de amor, de fato.

A relação que o diretor estabelece com esse passado revisitado é ao mesmo tempo bonita e desafiadora, saudosa e exploratória. Ele escapa da nostalgia paralisante e de um rememorar confortável por meio de uma sofisticação narrativa que impressiona. Retratos Fantasmas é fugidio, em certa medida estranho, sempre aberto a uma imprevisibilidade do que vem a seguir, pois arrisca uma articulação difícil (e frouxa) entre temas que não parecem se relacionar de forma imediata. A sequência final, divertida e misteriosa, é o corolário perfeito dessa identidade que o filme toma para si: a de uma obra em si meio fantasmagórica.

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