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Rio Doce

Rio Doce

As dores e fardos que moldam quem somos e como vivemos

Júlia Pulvirenti - 11 de outubro de 2021

O primeiro longa-metragem de Fellipe Fernandes aborda muitas questões. Luta de classes, racismo, paternidade e masculinidade. Mas realmente acho que vai além do óbvio. Aqui, acompanhamos a jornada de Tiago (interpretado por Okado do Canal). O jovem adulto, prestes a fazer 28 anos, não vive uma situação favorável. Sem dinheiro, ele deve para algumas pessoas, não tem luz em casa e vive apático. Uma dor terrível nas costas também o faz companhia. Até que um dia ele recebe uma notícia que transforma sua vida para sempre.

É possível comparar a ambientação de Rio Doce com Parasita, de Bong Joon-ho. Em um primeiro momento, somos apresentados à periferia de Olinda. Com planos abertos dos prédios precários, falta de saneamento e uma fotografia mais escura. Depois, conhecemos um pouco sobre outra parte da cidade, onde vive a classe média recifense. Desta forma, a obra vai tecendo paralelos entre as realidades, mas sem apelar para clichês. Nas duas cenas de refeição isso fica nítido. No aniversário, muitas pessoas em volta da mesa. Uma iluminação quente, que transmite aconchego, com a mesa farta. Uma família que celebra o aniversariante. Por outro lado, no almoço de Tiago com a família recém descoberta, conversas ríspidas. Uma luz mais fria, com poucas pessoas em cada plano. Inclusive, quando ele chega nesta casa, a construção ocupa quase toda a tela, como uma forma de intensificar a diferença entre os espaços. Não é, de verdade, a casa dele. Nas duas cenas, porém, o protagonista difere dos outros personagens. Sempre abatido e deslocado. Por isso, não acredito que o filme trabalhe com maniqueísmo. Não há mocinhos ou vilões. Há fardos.

O protagonista carrega uma bagagem pesada. Até pelo próprio nome do filme, sabemos que o lugar de onde ele vem é determinante para a sua vida. Um homem negro, sem estabilidade financeira, sem tempo ou dinheiro para ir ao médico tratar a sua dor. Apesar da temática forte, o diretor trabalha com sutilezas. E ainda com toda a história sensível de Tiago, vemos o seu lado negativo, como a ausência na vida da filha pequena. Ou seja, Tiago é um ser humano complexo, assim como todos nós. Um homem introspectivo, que foi criado pela mãe, pobre, que pede dinheiro para pessoas com caráter duvidoso. Humano.

É preciso dizer que Okado do Canal está muito bem no papel. O ator acompanha o tom da narrativa perfeitamente. Haveria espaço para um drama mais intenso, mas a escolha da direção é mostrar a indiferença com a própria vida. É como se a cada notícia ruim ou reviravolta, o protagonista perdesse seu brilho interno. Ele esboça reações pífias. É o caso daqueles momentos em que não existe força de vontade para lutar contra algo. Simplesmente deixa acontecer. Não é tristeza, é desesperança. E todas essas sensações estranhas vão criando conexão com outros personagens. Até os mais privilegiados têm seus problemas, mesmo que em outra escala.

No final, existe uma redenção. Aparentemente, Tiago fez as pazes com o passado e, mais do que isso, aprendeu com ele. A dor nas costas deu espaço à mochilinha rosa, de sua filha. Contudo, o último ato soa um pouco apressado e até um tanto moralista. Não que seja um grande problema, mas destoa do resto.


Este texto faz parte da nossa cobertura para a 10ª edição do Olhar de Cinema.
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