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‘Roma’ e as estruturas invencíveis de poder

‘Roma’ e as estruturas invencíveis de poder

Alfonso Cuarón parece com Stanley Kubrick em seu novo filme

Gustavo Pereira - 17 de dezembro de 2018

Contém spoilers de “Roma”, filme de Alfonso Cuarón para a Netflix. Assista aqui e leia a crítica aqui.

Falando com o crítico francês Michel Ciment sobre “Laranja Mecânica”, Stanley Kubrick salientou que era vital para a narrativa Alex (Malcolm McDowell) ser uma pessoa ruim. Quando as engrenagens de um sistema punitivo trituram um potencial inocente, não associamos a injustiça ao sistema, mas a uma falha desse sistema. Quando um inocente é condenado à morte, a culpa não é da pena de morte, mas sim do erro ao julgar e condenar um inocente, mesmo que esse erro só seja possível num sistema penal que comporta a pena de morte. “Laranja Mecânica” só funciona porque Alex, em frente da câmera, agride, rouba, estupra e mata. Não há dúvidas sobre a sua culpa. Se há alguém que “mereça” o Método Ludovico, é ele. Quando, ainda assim, a audiência se pega simpática a Alex e a todas as agruras que ele passa, não há a “desculpa” de ser um inocente sofrendo uma injustiça. É por um culpado que estamos nos solidarizando. Portanto, não resta alternativa senão assumir que o sistema em si é injusto e precisa de mudanças.

Roma Alfonso Cuarón Netflix

É possível interpretar “Roma” pelo mesmo filtro: Alfonso Cuarón constrói em Cleo (Yalitza Aparicio) uma protagonista tão irremediavelmente passiva que não resta alternativa senão assumir que o sistema em si é injusto e precisa de mudanças. Sem essas mudanças, ela nunca vai se emancipar da lógica escravocrata que molda a sua realidade. Cleo não é astuta, forte, perseverante ou mesmo carismática. Ela não é nada e seguirá sendo nada enquanto quem está no topo da cadeia alimentar (neste microcosmo, a família que a emprega como doméstica) não olhar pra baixo e se assumir como privilegiado, que explora pessoas totalmente indefesas como ela.

Num nível ainda mais simbólico, “Roma” é uma ferramenta para causar na audiência essa sensação de desconforto. O público, tenha ele visto o filme por ter uma assinatura da Netflix, tenha sido por ir a uma das sessões em cinemas elitizadíssimos do Brasil, como o Shopping Rio Sul, no Rio de Janeiro, faz parte dessa mesma parcela privilegiada da sociedade que tritura domésticas como Cleo. Em uma “jornada do herói” clássica, por mais que as estruturas que oprimem o protagonista sejam quebradas (o objetivo final de um diretor que usa do Cinema para denunciar tais injustiças), é num cenário de desolada imobilidade que nós, no “mundo real”, nos sentimos mais incomodados.

Se Cleo de alguma forma se libertasse, o filme causaria o efeito contrário, “aliviando” a audiência da culpa por sustentar essa lógica opressora. “Ela conseguiu, outros também podem conseguir”. O ponto é que, infelizmente, não podem. A maioria simplesmente nasce e morre fazendo parte dessa engrenagem. O destino de Cleo causa desconforto porque é mais corriqueiro do que gostaríamos de admitir. Em algum momento de nossas vidas, esbarramos em uma “Cleo” que perdeu os melhores anos da vida lavando roupas que o salário não pode comprar, ninando filhos que não concebeu, cuidando de uma família que a impede de ter a sua própria família. Queremos que a Cleo de Cuarón encontre redenção para nos esquecermos das “Cleos” que orbitam nossas vidas.

Roma Alfonso Cuarón Netflix

Mas um alento: quem se sentiu de alguma forma constrangido pelo final de “Roma” tem o coração no lugar certo. “Noves fora”, Cleo é uma personagem ficcional à mercê de um roteiro. A moça que faz o seu suquinho de laranja todas as manhãs, ao contrário, é de carne e osso. Por ela, você pode fazer alguma coisa.

Tratá-la como mais do que um liquidificador falante é um excelente começo.

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