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Objetos de fixação: sobre Peter Tscherkassky

Objetos de fixação: sobre Peter Tscherkassky

A obra do vanguardista austríaco explora possíveis modalidades da visão ao se apropriar de imagens do próprio cinema

Nicholas Correa - 25 de junho de 2020

O assistir é uma instância corrompida. É um dado básico que o olhar é anterior ao cinema, quando nossa sensibilidade se encontra com os filmes ela não se configura como uma perspectiva privilegiada, mas como um repositório de desejos e vícios que articula suas próprias defesas e concessões. Para além do mito do observador ideal, ou da voz sem corpo, se faz necessário reconhecer que falar sobre cinema implica em falar sobre vícios, desejos e fixações, algo que vale mais ainda quando faz-se cinema sobre o próprio cinema.

Se inserindo nesta problemática há mais de trinta anos, a obra do vanguardista austríaco Peter Tscherkassky vem dissecar vontades humanas que se dão ao olhar à partir das imagens do cinema. A matéria prima de seus trabalhos são materiais fílmicos preexistentes, fragmentos de celulóide, que são submetidos à intensas reedições, reconfigurações e transfigurações, são obras calcadas em atos de traição. Porém, definir Peter Tscherkassky como sendo simplesmente um cineasta iconoclasta soa inapropriado, pois existe no cerne de sua abordagem de apropriação e destruição algo que foge da simples negação dos discursos. Em Tscherkassky há tão somente um fascínio sobre seus objetos, um fascínio sobre as imagens das quais ele se apropria e das proposições que elas carregam. Não se trata pura e simplesmente de um rompimento com o que esses objetos propõem, mas de um processo quase paradoxal de distanciamento e de fruição sensual.

A aproximação de Tscherkassky sobre os filmes deixa transparecer ao mesmo tempo uma voracidade e um cuidado metódico. Nota-se um controle sobre ritmos e sobre seus efeitos no espectador, não é para menos que vários de seus filmes contam com um acompanhamento musical aliado a uma recontextualização do som para a construção desses compassos. Podemos observar essa construção rigorosa de ritmos em um de seus trabalhos mais reconhecidos, Instructions for a Light and Sound Machine, trabalho onde o cineasta apropria-se das imagens de Três Homens em Conflito. O contraste estourado, o ritmo das remontagens, a distorção do processo anamórfico, as reconfigurações realçam boa parte da tonalidade do filme de Leone ao mesmo tempo em que são atos de violência ao filme de base. Nos seus instantes finais, vemos a cena em que o personagem de Eli Wallach, em que ele corre por um cemitério, repetida e mesclada com outras imagens sucessivas vezes. Fusões e repetições que seguem um compasso que se acelera, como que seguissem um metrônomo em crescendo, até chegarem em um ponto crítico, ponto onde a cinética e o movimento dessa combinação dos planos de Leone parecem atingir um pico. Vemos a exaustão de um modelo, imagens que parecem esgotar suas potencialidades.

Um processo similar ocorre em Happy-End, curta que se debruça sobre um filme caseiro de uma ceia de Natal. O que vemos ao longo dos seus dez minutos de duração, é a repetição incansável da ceia, uma cena, em que desde o princípio já podíamos notar uma tradição e uma regularidade implícita nos gestos filmados, é repetida de modo a concretizar seu subtexto no seio da estrutura do filme. Assim como Instructions for a Light and Sound Machine, Happy-End também atinge um ponto crítico, suas imagens ao final ganham um aspecto de quase alto-relevo, como se as emulsões no celulóide que possibilitam a representação estivessem se sedimentado com a estrutura de repetição. Após a manipulação plástica de Tscherkassky, uma substância da obra original parece se projetar do interior do filme para fora. Essas imagens em “alto-relevo” (obtidas por meio de processos variados como solarizações ou a alternância de negativos com positivos) não são incomuns na filmografia do cineasta, elas aparecem em quase todos os seus trabalhos, incluindo algumas das imagens do cemitério de Instructions for a Light and Sound Machine perto do momento que estas também estavam chegando aos seus limites.

Denota-se então, que em se tratando de Tscherkassky não falamos de rompimentos, mas de apropriar tradições e modelos já existentes e esgarçá-los ao limiar da abstração, até onde a figuração e o suporte material da película o permitirem. Como aponta Cauby Monteiro “a destruição das imagens de Tscherkassky pretendem-se um trabalho de ourivesaria difícil, a questão não é o momento e sim construir da pérola outra pérola, mais torta e bizarra, mas igualmente bonita”. Dada sua variedade, o corpo da obra de Tscherkassky reforça sua curiosidade aliada a um conhecimento histórico do cinema, ela cobre as imagens do faroeste, do horror, da pornografia, da publicidade e até o pioneirismo implícito da imagem de um trem chegando à estação em L’arrivée.

O processo desses trabalhos de reconfiguração é ele mesmo atravessado por uma tradição pictórica que precede o próprio cinema. Em Coming Attractions, talvez sua obra mais paradigmática, Tscherkassky nos apresenta um filme dividido em seções distintas, o objetivo: explorar os princípios de um cinema cubista. O que vemos neste filme é o uso da contraposição de imagens de filmes já canonizados com imagens publicitárias como ponto de partida para discutir um certo cinema de atrações, ou melhor, a natureza da dita atração. Quando o filme enfatiza em um dos apontamentos sobre o cubismo “o caminho é o objetivo”, vemos que o mote do aparato de Tscherkassky, tanto neste quanto em seus outros filmes, é o de abordar modelos e condições, o estado em que uma imagem apresenta seu referente para nós; a forma de Instructions for a Light and Sound Machine incorpora a horizontalidade e a energia dos planos de Leone da mesma maneira em que as presenças que atormentam Barbara Hershey em Outer Space e em Dream Work são materializadas na própria agressividade dos recortes, das fusões e das solarizações. São os caminhos que possibilitam impressões sensíveis na experiência do cinema evidenciados e potencializados. Dito isso fica mais fácil compreender que seu fascínio com as imagens da publicidade em Coming Attractions deve-se justamente por elas representarem uma busca por uma imagem sensualmente perfeita, por elas serem tentativas de se chegar em um mundo pictórico idealizado.

É esse ímpeto pela atração que certas imagens no proporcionam que Tscherkassky explora continuamente a cada filme que realiza e que é explicitado naqueles em que ele abertamente explora os desdobramentos eróticos da imagem e do assistir, Tabula Rasa e The Exquisite Corpus. Nestes filmes, o voyeurismo que atravessa a filmografia de Tscherkassky ganha contornos mais definidos, o pressuposto básico de que o desejo e a fruição erótica se dão primordialmente no olhar é escancarado nestes filmes. Em Tabula Rasa, vemos o corpo feminino ao mesmo tempo desnudado e entregue na imagem, mas ainda com uma distância dada pela opacidade do dispositivo. O foco, a granulação, o tratamento plástico da imagem, as operações que atravessam o corpo fílmico ainda tentam arremessar a obra para fora de um campo figurativo. Tudo isso chega como que para privar-nos do prazer do corpo referente, mas também para apontar o prazer voyeurista como uma instância de simbolização. O mesmo é válido para The Exquisite Corpus, onde acompanhamos a destruição de um filme pornográfico. O ato sexual é velado, mas sua energia contamina a forma do filme. É justamente por essa forma destrutiva e energizada nos dar uma camada de distância que o filme de Tscherkassky alcança um erotismo real. Somos arremessados para uma dimensão platônica para que tenhamos condição de desejar alguma coisa em primeiro lugar.

E talvez o mais curioso em The Exquisite Corpus, é que todo o trabalho e energia destrutiva que compõe esse erotismo se dá na interrupção de um momento do filme pornô que foi apropriado, as operações de remontagem e ressignificação se situam no intervalo entre dois gestos, um olhar e a correspondência desse olhar. Um dos momentos mais determinantes sobre intenções implícitas na visão em toda a filmografia do cineasta. Apenas reitera o dado fundamental de que a obra de Tscherkassky se fundamenta em uma escopofilia que é inerente aos próprios filmes; se o cinema é o tempo todo um dar a ver, o que seria ele senão um fenômeno neurótico? Ao lançarmos um novo prisma sobre as imagens conseguimos dispor os seus caminhos e intenções. Mais do que contrapor tendências, ou negar um cânone por meio da destruição, esses filmes vêm para nos apresentar uma perspectiva sobre o cinema que tanto diz respeito aos filmes mesmos quanto à não-inocência de nossas impressões.

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