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Sombra

Sombra

Do exílio urbano-social à busca pela satisfação na noite

Igor Nolasco - 16 de julho de 2021

“Nightclubbing
We’re nightclubbing
We’re walking through town
Nightclubbing
We’re nightclubbing
We walk like a ghost”

­            — “Nightclubbing” (Iggy Pop / David Bowie)

 

“Well, things have been tough
Without the dum dum boys
I can’t seem to speak the language
I remember how they
Used to stare at the ground
They looked as if they
Put the whole world
Looked as if they put
The whole world down”

— “Dum Dum Boys” (Iggy Pop / David Bowie)

“Sombra”, num primeiro momento, parece um passo lógico na filmografia de João Pedro Faro. Em “Cripta I”, curta-metragem lançado em fevereiro desse ano através da plataforma Cine Limite, já estava demonstrado um interesse na exploração imagética de cópias em qualidade desgastada de filmes considerados menos nobres pela historiografia oficial do cinema brasileiro. No curta, a baixa resolução e os rastros deixados pelas imagens do VHS são reapropriados enquanto um recurso de linguagem. Já no novo longa, disponível para todo o Brasil até o dia 25 de julho através da plataforma digital do Festival Ecrã, o realizador vai além, tanto nessa exploração quanto em suas ambições estéticas e temáticas.

A partir de uma abertura que referencia justamente o  suporte fílmico utilizado enquanto imagem de arquivo para a composição do “Cripta I”, “Sombra” logo apresenta ao espectador o microcosmo sobre o qual irá se debruçar: o do exílio urbano; da solidão em meio à grande cidade. Se o filme é completamente rodado no Rio de Janeiro, como poderá perceber um espectador mais familiarizado com determinadas regiões do mesmo, o que prevalece, sobretudo durante a primeira metade, é uma sensação de marasmo e solidão característico do cotidiano dos locais mais distantes das áreas centrais do Rio, sobretudo certos bairros da zona oeste da cidade.

Esses dados geográficos, no entanto, não são necessários para que se sinta o que está sendo transmitido nas imagens, ainda mais quando se há uma exploração dos interiores e exteriores do ambiente onde vive um dos personagens principais (interpretado por Miguel Clark)  – são dois, e ambos não recebem nome. Com uma câmera que captura praticamente todos os cômodos de onde a ação se situa, Faro registra essa solidão também através de um uso inteligente do silêncio e de certas paisagens sonoras – no que se refere a estas, destaca-se a constatação de que o personagem, a princípio, mal fala. Mesmo quando recebe a visita de um amigo (vivido por Daniel Brito), prevalece entre os dois ou o silêncio ou uma conversa tímida, de certa forma constrangida, em tom baixo, permeada por pausas de ambas as partes. Ambos exalam, se não uma tristeza ou uma melancolia, uma espécie de apatia.

Essa apatia entre os dois (e de cada um para si próprio) permanece perene em qualquer tipo de atividade. Se vão à piscina, escutam música (um metal estrondoso), ou assistem a um filme (no qual, novamente, é demonstrado o apreço de Faro pela exploração dos rastros da imagem VHS), não importa – não conseguem sair desse estado letárgico de indiferença. É no movimento de sair para a noite – devidamente caracterizados à moda das bandas de metal que escutam, com sobretudos e pintura facial branca-e-preta – que se dá a busca concreta por algum estímulo. Saem do exílio urbano para descer ao asfalto de regiões mais movimentadas da cidade. Trajados de modo pouco usual para o Rio de Janeiro, destacam-se de imediato, mas ao mesmo tempo integram-se perfeitamente àquelas ruas escuras, com paredes marcadas por grafites e pichações, mal iluminadas pela luz amarelada dos postes públicos.

A partir do momento em que os personagens de Clark e Brito adentram a noite, “Sombra” passa a ser munido de uma tensão que vai sendo construída a cada plano. A caracterização dos homens em cena, a forma como são filmados, as ações e as falas (majoritariamente narrações em off), somadas, indicam que o pior pode estar à espreita, que os dois jovens são bombas-relógio prestes a explodir, numa catarse vingadora de toda a solidão, exclusão à qual ambos estiveram submetidos, social e geograficamente, durante todas as suas vidas. Enquanto o espectador sente a iminência do desastre, os dois observam o movimento de uma rua do bairro de Botafogo, sentados no meio-fio da calçada. Fumam maconha e preparam carreiras de pó. Através das narrações, contam histórias que teriam acontecido com amigos ou conhecidos, envoltas em componentes que remetem ao trágico.

Para desalento dos puristas que insistem em se referir à fotografia digital como sendo incapaz de reproduzir a analógica, Faro investe ávida e conscientemente nas possibilidades oferecidas pelo digital, se utilizando mesmo do que alguns consideram, nele, como defeitos. Parte inerente da composição das imagens no longa, e de toda a identidade visual deste, está na granulação da imagem nas sequências noturnas, onde os vultos dos protagonistas, com as faces distorcidas pela maquiagem, são iluminados de relance pelos postes. Proposta estética e proposta temática são enlaçadas de um jeito muito particular que, partindo de uma produção modesta, exibe segurança e não se dobra ante um possível desejo de fazer algo mais “limpo”. “Sombra” é, para todos os defeitos, um filme sujo – e se orgulha de sê-lo.

Mesmo quando os metaleiros atingem o gozo ao qual estavam buscando – através da violência física, direcionada a uma pessoa desconhecida na rua – o filme chega em sua catarse sem demonstrar, em seus personagens, qualquer tipo de excitação. Enquanto fazem a figura escolhida como objeto para essa descarga de fúria sangrar pela boca, não sorriem, não exalam satisfação. Os movimentos vigorosos da agressão não são acompanhados por insultos jocosos. E imediatamente após tal sequência, Faro nos leva de volta ao apartamento onde vive o jovem interpretado por Clark. Ali, os dois amigos parecem ter retornado à estaca zero. Permanecem com os rostos impassíveis. Vão à piscina, mas não se divertem, assim como nas primeiras sequências do longa. Mesmo tendo presumivelmente encontrado o que procuravam em sua aventura noturna, não tiveram, no momento tão ansiado, a sensação almejada. Novamente exilados da vida noturna carioca, parecem fadados a eternamente vagar por entre as áreas do prédio onde se passa a ação nas tomadas diurnas, na angústia de jamais colocar para fora o que sentem, incomunicáveis para com o restante do mundo e mesmo entre eles dois.

Caso dê continuidade ao caminho de “Sombra” no que se refere à produção de filmes em longa-metragem, Faro certamente ainda tem muito a mostrar. Através de uma abordagem minimalista, visualmente única, que mesmo construindo uma narrativa de certa maneira linear, afasta-se tanto das encenações convencionais quanto dos cacoetes de linguagem de festival do “novíssimo cinema brasileiro”, “Sombra” é um cartão de visitas extremamente efetivo para um realizador que entrega seu primeiro longa, deixando o espectador curioso acerca do que pode vir a seguir.


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