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Trainspotting (1996)

Trainspotting (1996)

Gustavo Pereira - 16 de março de 2017

Uma obra-prima. Não há meios-termos para este trabalho de Danny Boyle. Às vésperas da estreia de sua continuação, Trainspotting continua atual, mordaz, incômodo e instigante. Um equilíbrio perfeito entre direção, roteiro, elenco e aspectos técnicos como fotografia e montagem. Os questionamentos levantados desde o primeiro segundo ecoam no último, tornando o filme num ciclo perpétuo de prisão. Seja às drogas ou à própria sociedade.

O monólogo de abertura, quando Renton (Ewan McGregor) fala das “escolhas da vida”, que ele optou por abrir mão para poder ser um viciado em heroína “livre”, exibe uma contradição óbvia numa das drogas com maior potencial de dependência ser responsável por libertar alguém. Mas contém outra contradição, esta menos evidente: a liberdade de quem “escolhe a vida” não é mais do que uma ilusão. Logo, se Renton é um viciado em heroína, o resto da sociedade não seria viciada em uma vida previsível? Qual dos vícios é pior?

Quando Renton decide abandonar a heroína (ele faz isso bastante), conversa com o traficante “Madre Superiora” (Peter Mullan), que faz pouco caso. Repare que, apesar de ambos estarem expostos à mesma fonte de luz, apenas Renton está vermelho. Esta cor é um símbolo de virilidade e poder. Esta decisão intempestiva foi tomada durante uma “onda” de heroína, e este vermelho indica o quanto ele está influenciado pela droga. Mas Madre não: ele não é um viciado, ele apenas vende. Para ele, heroína não é diversão, mas trabalho. Ela não o afeta.

A cor vermelha representa os efeitos da heroína

Repare que, ao sair da boite, o vermelho vai diminuindo. Quando Diane desmoraliza Renton, praticamente só existe azul no quadro.

Outra contradição intencional: o azul, cor que conota sensatez, ilustra a decisão de Renton de resgatar supositórios com ópio de dentro de uma privada.; na verdade, não estamos vendo a sensatez em si, mas a sensatez que Renton pensa ter

A fotografia em Trainspotting sempre acrescenta camadas de compreensão para o filme não perder seu ritmo frenético com explicações. No começo do longa, praticamente todos os planos dos protagonistas são contra-plongées – câmera abaixo da linha dos olhos, apontando para cima – que os elevam praticamente à condição de deuses. Conforme a história avança, a câmera fica na linha dos olhos dos personagens, refletindo sua ascensão ou queda. O poder de uma câmera no chão filmando uma pessoa caída é devastador.

Aplicações do contra-plongée em Trainspotting: servem tanto para aumentar quanto para diminuir os personagens

O exemplo mais claro de como a técnica funciona para os dois espectros: Sick Boy antes e depois de descobrir algo horrível

Outro elemento que dá dinamismo a Trainspotting é a montagem. Com uma música eletrônica animada e cortes rápidos, o filme conta como foram as noites de Renton, Spud (Ewen Bremmer) e Tommy (Kevin McKidd). O uso de rimas visuais e cortes onde a ação continua em um cenário diferente também ajudam o expectador a preencher as lacunas e acompanhar múltiplas narrativas simultaneamente.

Múltiplas também são as referências: na imagem superior, uma homenagem à sequência inicial de “Laranja Mecânica” (1971); nas inferiores, uma referência direta a “Taxi Driver” (1976). Repare que, após um enquadramento em primeiro plano, que aproxima os personagens de McGregor e De Niro, o seguinte é um médio que, ao expor mais de Renton, mostra o quão ridículo ele está.

As narrativas em Trainspotting escondem seu peso dramático numa representação caricata. A desgraça de Tommy, provocada por Renton sem absolutamente nenhum motivo; a total falta de controle de Spug devido ao seu vício; a psicopatia de Begbie (Robert Carlyle), o único que não usa heroína; Sick Boy (Jonny Lee Miller), que perdeu parte de sua humanidade em um evento traumático.

Danny Boyle usa magistralmente lentes grande-angulares. As “olho-de-peixe” criam uma maior profundidade de campo, alargando os quadros. Serve para realçar circunferências em planos retangulares (acima), simbolizar confusão mental (centrais) e aumentar a sensação de enclausuramento (abaixo)

Não apenas uma crítica à sociedade, Trainspotting é uma história de personagens. Sua conclusão, assim como a introdução, é propositalmente paradoxal e contraditória. O mal que é feito para viabilizar o bem, mas que não é feito por ninguém com intenções nobres.

Em duas ocasiões, Renton usa o espelho para olhar nos olhos do espectador. Em ambas, ele acaba de tomar uma decisão. Em apenas uma delas, a decisão é consciente. É muito fácil descobrir em qual delas.

Renton, segundo ele mesmo, é apenas uma “pessoa má”.

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