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Zé

Um filme de cinema

Wallace Andrioli - 24 de junho de 2023

O principal mérito de , que narra a perseguição sofrida pelo militante da Ação Popular José Carlos Mata Machado (interpretado por Caio Horowicz) durante a ditadura militar, é transitar com desenvoltura entre a abordagem convencional e uma encenação sofisticada, que escapa das caretices formais tantas vezes presentes em representações audiovisuais desse passado histórico, tanto no cinema quanto na televisão. Esse é um filme estritamente narrativo, que como tal lida com velhos problemas dessas representações anteriores, mas muito feliz em quase todas suas escolhas estilísticas.

mobiliza com certa frequência recursos potencialmente engessadores de sua dramaturgia, como diálogos expositivos e declamatórios e, sobretudo, as leituras de cartas do protagonista para a câmera, provavelmente os momentos mais fracos do filme. A primeira meia hora da narrativa gera a impressão de se tratar de mais um olhar primário para a luta armada e a ditadura militar, um misto de idealização e maniqueísmo embalado em gestos performáticos que se pretendem politicamente potentes. Nesse sentido, todas as cenas iniciais de José Carlos com Bete (Eduarda Fernandes), sua futura esposa, são bem ruins.

Por outro lado, o diretor e roteirista Rafael Conde e a corroteirista Anna Flávia Dias acertam na delimitação do foco do filme na fuga do casal e na intensificação do cerco de que são alvo. Dessa forma, passa do risco de uma abordagem generalista e pouco cuidadosa do embate entre Estado autoritário e organizações revolucionárias para a apresentação de um caso específico, o que permite a Conde dar maior densidade aos seus personagens – não só a José Carlos e Bete, mas também a Gilberto (Rafael Protzner), irmão dessa última e delator, e a companheira de luta Grauninha (Samantha Jones), no fim das contas as figuras mais interessantes do filme – e se dedicar à construção de uma atmosfera de crescente tensão.

O mais interessante é que Conde não faz isso por meio de qualquer histrionismo visual, mas apostando numa encenação distanciada, com uso recorrente de planos abertos e longos em momentos dramaticamente importantes, tornando um filme elegante, discreto, bonito de ser visto já que estilisticamente pouco óbvio. E, no final, o diretor ainda usa de uma maneira muito mais adequada que anteriormente o artifício do protagonista quebrando a quarta parede: no intervalo de uma sessão de tortura, José Carlos se dirige ao mesmo tempo à câmera e a um interlocutor possível na diegese, mas não visto no quadro, para deixar registrada sua resiliência e, consequentemente, confrontar a versão oficial de sua queda produzida pelo aparato repressivo da ditadura (que atribuiu a ele a delação de outros companheiros). Lembra o brilhantismo de Roberto Farias numa das mais dolorosas cenas de Pra Frente Brasil (1982), a do memorável monólogo de Reginaldo Faria. Conde faz aqui cinema de verdade e consegue encerrar muito bem seu filme.

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