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Os paradoxos cosmopolitas em “Diana Caçadora”

Os paradoxos cosmopolitas em “Diana Caçadora”

Márcia Denser mescla elementos da pornochanchada e da TV aberta para expor o ridículo da elite intelectual paulista das décadas de 70 e 80

Beatriz Pôssa - 14 de setembro de 2020

“Miss Diana Marini, vulgo Calamity Woman, vulgo A Misteriosa Gueixa Kamikaze” – é assim que Márcia Denser nos apresenta a heroína de seus contos na compilação Diana Caçadora publicado em 1986, que segue o estrondo de sua estreia com Tango Fantasma, de 1974. Denser analisa os anos 70 e 80 com acidez partindo do objeto da elite intelectual paulistana, mas sua Diana Marini não se envergonha de consumir todos os canapés das orgias da classe média-alta e regurgitá-los pela São Paulo cosmopolita que pinta, seja em uma festa nos Jardins ou em um motel barato. Não por menos é evocada a imagem e os símbolos da deusa romana – Diana atravessa a cidade munida de seu arco e flecha invisível em busca de encontros apaixonados com homens anônimos e debates acalorados sobre literatura. 

No prefácio da edição de 2003 da Ateliê Editorial, o autor Bernardo Ajzenberg propõe que a escrita de Denser é uma espécie de radiografia sangrenta da sociedade brasileira durante as duras décadas de regime militar. É São Paulo pós-AI-5 sob escrutínio de uma mulher de hábitos libertários, discurso mordaz, que não tem medo de colocar uma lente de aumento sobre suas próprias feridas. A narrativa de Diana, de modo nada panfletário, aborda o tópico de libertação sexual da vivência de mulheres brancas comum à época, e suas experiências são potencializadas pela escrita de Denser que nunca procura ser uma denúncia explícita ou direta, e muito menos possui ares moralizantes, sobre o corpo feminino, o sexo ou as práticas de classes sociais mais abastadas. O universo de Diana é muito mais em tons cinzentos do que o preto no branco – é claro que a personagem explora sua sexualidade, mas ao mesmo tempo sempre se vê cercada de homens que a colocam em um lugar de submissão, e demonstra até buscar pelo autoflagelo em diversos momentos. A definição de Ajzenberg é certeira: Denser radiografa o terreno da busca pelo prazer e pela própria liberdade associado ao cosmopolitismo paulista com uma transparência quase jornalística, em que seus personagens carregam o peso de seus privilégios burgueses, seus elitismos e suas xenofobias, suas concepções distorcidas e a capacidade de construir discursos venenosos sem culpa. É justamente pelo processo de evitar a redenção e uma “problematização” de Diana que Denser nos entrega uma escrita totalmente desprovida de meias palavras, uma narrativa que não pisa em ovos ao desenhar a realidade de uma classe social que por si só não procura perdão.

No conto que abre a compilação, Welcome to Diana, Denser já nos faz mergulhar de cabeça no universo complexo de sua caçadora. No início deste conto Diana está dividindo a cama com Silas, um figurão que insiste em longos papos sobre as sinfonias de Bach; e divaga: “logo eu, Diana Gardel, Diana Jobim, Diana Piazzolla, e por que não, Diana Brubeck, Diana Jarret (Keith), que nunca tive saco para os clássicos”. Diana se opõe veementemente à erudição mesmo afogada em mil referências literárias – a personagem é uma publicitária, autora que alcançou relativo sucesso com uma publicação de contos eróticos. Esse posicionamento é recorrente durante o percurso dos contos de Denser já que Diana sempre brinca com os personagens a sua volta em competições intelectuais internas; escolhe por vezes o silêncio durante as discussões para não rebater mesmo que demonstre seu desprezo através de suas descrições. O jogo de contradições de Diana atravessa suas experiências, e em poucas linhas ela vai do céu ao inferno. No mesmo conto, Silas insiste em seus monólogos sobre literatura enquanto Diana, após ser submetida à sodomia contra sua vontade, está estancando uma hemorragia anal no banheiro do motel. Diana grita, xinga o companheiro dos nomes mais sórdidos, e quando volta para cama Silas a compara com Lolita e se coloca como Humbert-Humbert. Diana, mesmo com visível desgosto por Silas e pela maior parte das pessoas que compõem seu círculo social aceita quase passivamente o que lhe dizem, demonstrando ter um encanto mórbido sobre as pessoas apesar do evidente desconforto. 

A narrativa nos conduz pelos campos do grotesco e da transcendência mesmo que esta seja enredada pelos muitos graus de cinismo de Diana. A escrita de Denser é contraditória como sua personagem: é carregada de termos médicos e grotescos, situações quase caricaturais com vários níveis de violência. Diana tem uma segurança praticamente exagerada, de afetos arrasadores, ao mesmo tempo que é construída sobre suas fragilidades. Denser escreve um erotismo gosmento, desconfortável, transformando – ou deformando – traços dos sonetos eróticos da pioneira Gilka Machado. A poeta carioca arquitetava seus versos nos moldes simbolistas da virada do século XIX para o XX partindo sempre da matéria-carne, da matéria-ventre, ao explorar a subjetividade do palpável e penetrável com uma sensibilidade única e uma linguagem entranhada na viscosidade do corpo. Para exemplificar, Gilka elabora o seguinte quadro na estrofe final do poema Sensual, retirado de seu livro de estreia, Cristais Partidos (1915): “Mas, se estás ao meu lado, a barreira desaba, / e sinto da volúpia a escosa e fria lesma / minha carne poluir com repugnante baba…”. Como no simbolismo caótico que no mesmo verso vai da castidade à lascívia de Gilka Machado, há também em Denser uma dicotomia entre o mais poético do transcender literário e o “repulsivo” das pulsões do corpo. Denser trabalha com a sublimação a partir da carne, constelando esse encontro particular da linguagem que aparece algumas vezes no cânone da literatura erótica. O universo de Diana é seu campari das quatro, o inchaço do fígado, “as barrigas cheias de quiromancia e molho de mostarda”, o incômodo dos homens com as verdades difíceis do feminino. Diana trabalha suas dores profundas e confusas nas festas das coberturas, nos círculos altamente intelectualizados, com os homens muitas vezes violentos e sempre canalhas, acadêmicos e escritores. Tudo isso é encapsulado em fluxos de consciência de parágrafos extensos que chegam a ocupar por vezes páginas inteiras, enredando desta forma o leitor em um cataclisma de imagens extravagantes que inflamam uma falta de ar específica do microcosmo de experiências de Diana.

O Vampiro da Alameda Casabranca nos mostra as intenções masculinas quase literalmente vampirescas da realidade cosmopolita paulistana em personagens definidos arquetipicamente como o Belo Fascista, o Poeta, a Branca de Neve e Klaus, o interesse romântico de Diana, em um cenário de uma reunião “amigável” em um apartamento na Alameda Casabranca onde Diana se vê cercada de signos nazifascistas. Neste conto Diana traz logo em sua frase inicial uma síntese dos perfis a sua volta: “A não ser pelo filme japonês em cartaz, não havia nenhum interesse em sair com aquele sujeito, poeta, que se ostentava ‘maldito’ só para poder filar seu canapezinho de caviar nas altas rodas”. Diana passa o conto inteiro querendo fugir daquele apartamento e daquelas pessoas, e ao finalmente conseguir se vê completamente perdida e atordoada em São Paulo. Adormece em um banco no jardim do Trianon e quando acorda não há mais nada a fazer além de voltar de táxi àquele mesmo endereço. Diana admite com lisura suas fraquezas e aceita o poder que os homens exercem sobre ela, além de abraçar a forte dependência física e emocional das suas relações. Não habita um mundo de amores platônicos e afirma, “gosto daquilo que posso pegar e pego o que posso”. Diana não se contenta com o que já tem e sempre deseja mais – seus encontros amorosos são sempre ao mesmo tempo tudo aquilo de mais terreno e mais celestial; há misto de paixão e um ódio agudo.

Como um bom fruto de sua época, os contos de Diana Caçadora são ritmados, sempre acompanhados de uma trilha sonora diegética. Em O Animal dos Motéis, as angústias e decepções amorosas de Diana são intercaladas com versos da música Desabafo, de Roberto Carlos. Por que me arrasto aos seus pés? — a voz macia de Roberto avança pelo quarto mofado de motel em que Diana está enquanto observa o anônimo de “fria ternura” que a acompanha e que quer discutir sobre Hemingway, uma cena que parece retirada de um filme de Carlos Reichenbach. Seguramente Denser trazia em seu repertório o imaginário das pornochanchadas setentistas e oitentistas que tanto brincavam com os artifícios musicais. Se o Transa (1972) de Caetano Veloso é a trilha única e intransponível em Os Homens Que Eu Tive (1973), filme de Teresa Trautman censurado pela ditadura militar, no universo que Márcia Denser cria os cenários também devem ser longos clipes musicais, se apropriando então de um mecanismo certeiro para criar ambientação. Em Ladies First, conto em que Diana se vê em um encontro acidental com Maria das Graças, uma poeta lésbica nordestina, e revela todos seus preconceitos de raça, classe e orientação sexual, é no carro do grupo de amigos de Das Graças que uma fita de Marina Lima toca no último volume, embalando com uma atmosfera própria aquele momento desconfortável para Diana. Já em Tigresa, Diana é convidada por uma fã de seus textos para uma festa que usa as articulações românticas da música de Caetano de mesmo nome para descrevê-la, um rasgar de seda que amacia e ao mesmo tempo destrói o ego de Diana que se vê velha diante de jovens fãs de literatura. Fruta Secas, mais para o fim do livro, resgata novamente Roberto e Os Seus Botões se torna a trilha de mais um romance confuso de Diana com um homem casado. Faz sentido Roberto ser tão presente durante as aventuras de Diana, uma vez que há uma energia muito semelhante nos caminhos tomados em suas músicas durante as narrativas construídas por Denser, principalmente quando buscam o sensual a partir das mínimas do cotidiano, construindo de forma extremamente romântica (e, claro, cafona – no melhor sentido da palavra) aproximações simples entre objetos mundanos e o ato sexual, como Roberto faz no seu hit de 1981, Cama e Mesa

A atmosfera da escrita de Denser se enriquece muito ao se apoiar na tal cultura de massa; nas imagens sensuais não-explícitas das pornochanchadas, nas trilhas sonoras, na linguagem das telenovelas – principalmente nas histórias de Janete Clair e seus retratos da burguesia brasileira do tempo da ditadura. No conto Tigresa Diana simula um diálogo de salão beleza, em que se sentaria na cadeira e ouviria (ou ela mesma perguntaria): “O que vai ser hoje, Pecado Capital ou Divórcio?”. Há um contato intenso com a realidade da TV aberta e principalmente com os contrastes dos ícones do audiovisual da época – Diana Marini de muitos modos ecoa o dualismo de Sônia Braga, que no ano de 1978 brilhava tanto em A Dama do Lotação de Neville de Almeida quanto na estrondosa Dancin’ Days, novela de Gilberto Braga e Janete Clair. Denser traz uma descrição ridicularizante dos membros da elite – um pouco como o mesmo Neville faz em seu espetacular Rio Babilônia (1982). É o cosmopolitismo, o bizarro das metrópoles, a caminhada à redemocratização que significa pouco ou quase nada para aqueles enriquecidos. Denser tece sua crítica se utilizando de signos compartilhados com as populares pornochanchadas do período, articulando assim comentários incisivos sobre o contexto da época com uma representação realista dos exageros da burguesia. A autora consolida seu posicionamento no movimento de inserir Diana na lógica massacrante da classe média-alta, como se ela própria fosse simultaneamente uma protagonista da novela das oito e de uma pornochanchada paulista.

A paradoxal Diana Marini se conclui então em Relatório Final, conto escolhido para encerrar a compilação. A personagem faz um balanço de sua atual situação e embarca em diversos devaneios na véspera da virada de 1977 para 1978. Diana reflete sobre o problema da literatura, definindo-a como “a requintada crueldade de poder observar as próprias vísceras expostas refletidas no espelho e imaginando não ser as nossas”. Durante o conto, a caçadora descreve um encontro sexual com um anônimo de Osasco. Se encontrava bêbada a ponto, como ela mesma diz, de “não recusar nem o Nosferatu como companhia”, caracterizando o homem como um “aquilo” sem rosto, sem nome. Depois de transarem atrás da Igreja em uma praça que Diana descreve como cheirando à “merda velha”, nossa calamity woman o abandona na terra batida e encerra o conto de maneira poderosa: “Dentro do táxi fui embora imaginando você morto lá em Osasco enquanto eu moro no Morumbi e amanhã vai ter uma puta festa”. Márcia Denser constrói Diana Marini afligida por todos os sintomas da burguesia partindo de sua própria máxima: sua escrita tem mesmo uma crueldade ímpar ao derramar as vísceras pelas páginas em doses nada homeopáticas. Se Diana é frequentadora de festas no Morumbi, e expõe as narrativas absurdas da elite e o ridículo da branquitude; há por outro lado nela uma internalização violenta da submissão, uma dificuldade dos debates e da criação artística, uma miscelânea de erudição e da “cultura popular”. Deste modo, Denser cria em seus contos um coquetel de sabor rico, ora doce, ora corrosivo, de seu contexto espacial; e retrata de maneira absoluta a complexa produção artística e intelectual brasileira das décadas de 70 e 80.

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