Rafhael Barbosa e Werner Salles, de Cavalo

Rafhael Barbosa e Werner Salles, de Cavalo

Falamos com os diretores Rafhael Barbosa e Werner Salles sobre a concepção e repercussão do filme, disponível no Festival Ecrã até dia 30

Redação - 29 de agosto de 2020

Cavalo surge como o primeiro longa-metragem do estado de Alagoas realizado por meio de um edital. Um expoente da safra da Mostra de Tiradentes, Cavalo está em exibição gratuita no Festival Ecrã, disponível até o dia 30 de agosto. Falamos com os diretores Rafhael Barbosa e Werner Salles sobre a concepção do filme e a repercussão nacional proporcionada pelo alcance virtual do festival.

Sobre a visibilidade que o filme ganha no país inteiro ao ser exibido online e de forma gratuita através do Festival Ecrã

RAFHAEL: Eu acho que esse formato pra nós, pro Cavalo, foi sensacional. A gente não teria tido a repercussão que está tendo em nenhum outro modelo de festival. Ainda que fosse online, se fosse pago, seria diferente. Essa opção de ser online e ser gratuito assim, nesse momento, foi incrível.

WERNER: O filme estava meio encarcerado. Ele teve o seu período de lançamento impedido [pela pandemia]. Armou-se, principalmente em Alagoas, uma expectativa  muito grande em torno dele, e ele não passou. O Ecrã veio para realizar o desejo de um monte de gente que estava esperando pra ver, assistir, era um fluxo muito grande aqui em Alagoas.

RAFHAEL: A gente tinha agendado [o lançamento] pra 17 de março, se não me engano, uma pré-estreia aqui. Era na mesma semana [que os cinemas foram fechados em decorrência da pandemia].

WERNER: Era em um centro de convenções, coisa pra 1.500 pessoas, enviamos convites…

RAFHAEL: Foram disponibilizados 1.200 ingressos e eles acabaram em 3 dias, a expectativa estava bem alta, por ser esse primeiro longa contemporâneo daqui, tinha muita gente querendo ver e torcendo pelo filme.

Sobre a sensação de ter o projeto abraçado pela população de Alagoas

RAFHAEL: As pessoas estão se vendo representadas, sentindo muito orgulho. Tanto pelo fato de ser o primeiro filme local, feito por editais daqui, tendo um alcance maior por isso, por ter valores de produção, por ter a possibilidade de estrear no cinema (e a gente está planejando isso pro ano que vem), quanto por estar no filme, por como Alagoas é mostrada, muito por isso.

Os artistas que aparecem no filme são muito queridos aqui também. O que a gente mais vê na repercussão são elogios aos artistas, eles são mais marcados [em publicações sobre o filme] do que a gente. As pessoas vibram muito por eles, pela força com a qual eles estão no filme. Isso é muito bom.

Sobre a veiculação do filme em um festival online enquanto uma ajuda para que ele seja assistido enquanto não estreia em cinema, e sobre a resposta vinda das redes sociais

WERNER: Em partes [ajudou], mas por outro lado não, porque nem todo mundo assiste online; muita gente tentou e não conseguiu, mas eu acho que pelo menos aquelas pessoas que estavam realmente queriam ver… Não sei se [o Festival] vai divulgar o número de visualizações do filme.

RAFHAEL: Vai, no final.

WERNER: Pelo menos na nossa bolha, na bolha que o filme fez, sim, ele teve uma repercussão grande. A gente não sabe também a dimensão. As críticas também dão uma ideia pra gente de que existe uma repercussão.

RAFHAEL: A gente tem um termômetro a partir das redes sociais do filme, e a repercussão realmente está enorme, pessoas do Brasil inteiro vendo o filme e vindo falar com a gente. Pessoas iniciadas em terreiro também, de vários lugares, páginas de Umbanda e Candomblé repostando, compartilhando, vendo e se emocionando, então a gente conseguiu também tocar esse público, que é um público-alvo primordial do filme, e que era muito importante para a gente se comunicar com eles, que eles se vissem bem representados. Isso foi acontecendo de uma maneira bem linda.

Num depoimento de uma moça de Minas, a Débora, que eu não conhecia; ela fez uma postagem e marcou a página do filme. Uma postagem muito forte, dizendo que o filme era a coisa mais linda que ela já viu na vida. Aí eu fui conversar, pensei “nossa, se o filme marcou tanto uma pessoa eu preciso conversar com ela”. Adicionei ela e fui saber mais. Ela falou que é iniciada no Candomblé, mas por conta da pandemia ela estava um pouco em crise com a religiosidade dela, por estar sem poder ir para o terreiro, por essa e outras questões. Ela disse que o filme fez com que ela se reconectasse, que ela geralmente não consegue se ver bem representada pelo olhar do outro por esse aspecto, da religião, e que o filme foi a visão que mais a representou bem até agora. Eu achei isso incrível.

WERNER: Eu acho curioso também, você falou isso agora e algumas pessoas também falaram pra mim, que é um filme que instiga as pessoas a criarem, as pessoas ficam instigadas a filmarem e produzir arte, ou como ela, incentivou ela a uma volta à religiosidade dela. Então é um filme que instiga.

Sobre o mito da criação do homem por Nanã na crença do Candomblé enquanto epígrafe para Cavalo, e sobre a influência de Nanã sobre o filme 

RAFHAEL: A gente fez uma pesquisa, a gente leu muita coisa para tentar mergulhar o máximo nos conteúdos, em livros, textos, filmes sobre o universo das religiões de matriz africana. Essa descrição está no livro [“Mitologia dos Orixás”] do Reginaldo Prandi. Entre as muitas coisas que a gente leu, a gente achou que aquilo tinha uma narrativa muito poderosa, que aquilo merecia estar no filme e que merecia estar nessa epígrafe. Lembro que a gente se questionou se era muito didático, se esse texto traz um didatismo, mas a conclusão à qual a gente chegou é que era tão importante, era uma mensagem tão forte, que valia a pena estar lá.

Em um momento a gente pensou em usar isso só para inspirar as performances, como sendo um dos preparadores para construir aquelas performances ali, como também foram utilizados outros trechos, outras referências, mas no final a gente decidiu assumir ela. É um negócio que tem repercutido muito, as pessoas vem discutir muito, como se fosse uma das coisas mais importantes do filme, como se o filme fosse sobre isso. É muito interessante.

WERNER: E ela está no roteiro desde o início, desde a primeira versão, ela está no começo. Nanã se impôs no filme, acho que ela se impôs.

RAFHAEL: Como o filme fala de criação de várias outras maneiras distintas, acho que isso conseguiu casar bem no conjunto, amplifica essa ideia da criação que a gente estava tratando.

WERNER: O simbólico que bateu na gente foi que Nanã cria o homem do barro, da lama. Alagoas tem toda essa região que vive do sururu, que é um crustáceo extraído da lama. No filme a gente bota aquela cena dos pés do pescador, é assim que eles pegam o sururu, botam no barco. Então a lama, pra gente, tinha um significado forte também. Essas coisas foram se montando, casando, criando… depois a gente descobriu que Nanã era mãe de Omolu.

RAFHAEL: A gente não sabia que tinha essa relação direta.

WERNER: Ela foi se impondo. A criação do homem, o processo de criação. Ela ser mãe adotiva de Omolu, cuja mãe verdadeira é Iemanjá, que abandona o filho cheio de chagas; Nanã pega pra criar. Tem uma questão também muito forte, a de que Nanã é o orixá mais velho, mais sábio. Ela guiou a gente.

As cores que aparecem no filme, tem uma paleta de cores que aparece no filme. Claro que tem um dedo da direção de arte, mas ela começa a aparecer espontaneamente no filme. É a cor dela, o lilás. Tem vários momentos. A mãe do Lulinha, aquela senhora que pega ele no colo, ela, nas duas vezes que ela aparece, ela aparece com uma camisa espontaneamente lilás.

RAFHAEL: Foi ela que escolheu o figurino.

WERNER: E o tom do lilás meio que começou a fazer parte da paleta das cores, de forma inconsciente, nem tão consciente, mas ele foi se apoderando; um cara que ia pro ensaio com uma calça roxa, a mãe do Lulinha que aparecia com uma camisa de cor lilás, isso começou a ser construído também. São as coisas que a gente não consegue explicar no filme, mas que começam a fazer muito sentido depois.

RAFHAEL: O processo do filme tem muito desses sinais que chegam pra gente, a partir do momento em que a gente decide deixar aquela intuição guiar o processo do filme a gente se depara o tempo todo com os sinais que nos chamam, que nos envolvem e que acabam influenciando nas decisões criativas ou em coisas que a gente nem racionaliza e só está entendendo agora.

Sobre a integração da cultura dos orixás com a geografia e topografia de Alagoas

RAFHAEL: Foi algo planejado. A gente pensava muito nisso. Voltando a essa cena da criação do homem, a gente queria muito que isso simbolizasse também nosso imaginário do mangue. Queríamos recontar a criação do homem em Alagoas.

É um filme que tem muita afirmação alagoana o tempo inteiro. É muito importante pra gente, também, falar sobre tudo isso nesse lugar.

WERNER: O sururu também é importante. É  a comida da parte da lagoa, da periferia, é como o pobre sobrevive. E é um lado lindo da lagoa que a gente estava explorando na nossa pesquisa de locação, a gente estava andando por lá o tempo todo. A gente queria aquela lama, a gente queria aquele ambiente, aquele universo pro filme desde o começo. Quando a gente leu Nanã falando da lama vimos a ligação que a gente queria, estava ali.

RAFHAEL: Tem um antropólogo que acabou de falecer, ano passado, ele fala de “povo anfíbio”, chama o alagoano de “povo anfíbio”, por causa da presença muito marcante que a gente tem da água na nossa geografia,  nas lagoas que são invisibilizadas porque margeiam a periferia da cidade [de Maceió].

A gente vem de uma cidade que tem um turismo muito forte, mas é um turismo de Sol e mar, que é um turismo extremamente elitista e que vem crescendo muito nessa visão da cidade de veraneio, de reveillón, pra onde a elite brasileira está vindo cada vez mais. A gente foge disso, o mar aparece no filme em uma cena, de uma forma bem bonita.

Sobre o novo ciclo do cinema alagoano e a iniciativa Alagoar

WERNER: Um detalhe bem interessante dentro disso aí é que Sururu é o nome da mostra de cinema alagoano que completou dez anos agora. Mostra de Cinema Sururu. É o símbolo que a gente queria botar no filme.

RAFHAEL: Nosso cinema é um cinema sururu.

WERNER: Da lama.

RAFHAEL: A gente não tem uma tradução muito longa de produção de cinema. Tem um nome muito forte atrelado a Alagoas que é o do Cacá Diegues, por exemplo. É cineasta que nasceu aqui e saiu com 8 anos de idade pra morar no Rio, mas filmou muito em Alagoas. Para o imaginário nacional essa referência é muito forte, mas a produção contemporânea é algo bem distante desse cinema do Cacá.

A gente tem no nosso ciclo histórico um período de pioneiros nos anos 30. Em 1933 o cinema chega a Alagoas, em um período próximo ao do ciclo do Recife. Temos um pioneiro chamado Guilherme Rogatto, que é um italiano que fixa residência aqui e começa a filmar as paisagens e faz o que é considerado o primeiro longa alagoano, apesar de ter apenas meia hora, porque naquela época os longas eram menores, chamado “Casamento ou Negócio?”, filmando muito essa geografia da lagoa.

Tem um outro filme também, do Edson Chagas, que é um expoente do movimento do cinema pernambucano dessa época, ciclo de Recife. Ele sai de Recife, mora um tempo em Alagoas e faz um western, que se chama “O Bravo do Nordeste”, mas esse filme se perdeu. Eu pesquiso isso, 15 anos tentando encontrar esse filme, e um dia eu vou encontrar… ou não, pode ser que ele tenha se perdido de fato, mas é melhor não perder as esperanças.

A gente tem um salto disso pra um festival de cinema Super 8, o Festival de Penedo. Talvez você não tenha ouvido falar dessa versão anterior dele, ele retornou agora. Na época ele era importante, surgiu junto com o Festival de Brasília e Gramado, que foram os primeiros festiais de cinema nacional. Ele surgiu depois de Gramado, foi meio que o terceiro festival dessa época. Tinha uma movimentação interessante, porque Penedo é uma cidade incrível. Nesse momento, impulsionado pelo festival, a gente teve um boom de produções [filmadas em] Super 8. Esse festival também influencia o começo da carreira de Celso Brandão, que é o nosso cineasta que mais produziu, mais de 50 filmes.

Quando acaba esse festival, no começo dos anos 80, a produção de Super 8s definha e há um hiato. Se produz alguma coisa nesse período, mas de uma forma muito amadora e espaçada. Eu diria que o retorno de um novo ciclo de fato a gente tem com as políticas de democratização do audiovisual que surgem no governo do PT, principalmente o Doc TV. Isso a partir de 2003.

WERNER: Eu acho que esse novo cinema alagoano, essa retomada, é totalmente associada às políticas públicas de democratização do audiovisual. Isso começa com o Doc TV, que é uma política do Gilberto Gil de regionalizar a produção, cada estado iria produzir um documentário pra rede pública. A partir de 2003 começam essas produções e começa a se formar um pensamento de produção. A gente teve que formar equipe, a gente teve que filmar. Todo ano tinha um Doc TV. Foram quatro edições, quatro filmes feitos em quatro anos.

 RAFHAEL: Foram cinco, porque teve um ano em que tiveram dois.

WERNER: Depois começam as políticas do estado, as políticas de curtas, os Arranjos Regionais, de onde vai geminar Cavalo.

RAFHAEL: É curioso porque esse ano, 2020, faz dez anos desde que o primeiro edital local foi lançado pelo governo do estado. Cinco curtas de quinze mil reais. Esses filmes, quando ficaram prontos e foram lançados, tiveram uma repercussão, foi algo que estimulou muita gente a produzir. Teve um segundo edital, que aumentou um pouquinho o valor. Acho que em 2015 tem o primeiro edital com os arranjos regionais, é quando surgem os Arranjos Regionais, o edital do Cavalo. Lançou-se uma vaga pra um longa e acho que seis curtas. A gente ganhou esse edital com o Cavalo, e aí se inicia essa jornada.

Depois disso foram lançados mais dois outros, com vagas pra mais cinco longas. A gente tem aí pela frente a perspectiva de lançar pelo menos mais cinco longas nos próximos anos, e diversos curtas.

WERNER: Esse momento agora é muito especial, porque a gente está com o Cavalo e tem curtas ganhando o mundo em vários festivais. São o A Barca, do Nilton Resende, que foi pra Tiradentes, pra vários festivais, o Trincheira, do Paulo [Silver], tem o Ulisses Arthur, com um filme que está entre os melhores curtas do ano. É uma série de produtos  que são feitos não simultâneos, mas no mesmo tempo, e que começam a dar uma visibilidade da produção local.

É um momento importante para o profissionalismo, porque quanto mais produção, a cadeia vai aumentando e a gente vai aprendendo a fazer. Alagoas não tem escola de cinema, então é fruto da produção, da prática.

RAFHAEL: Uma das razões para esse momento de tanta importância que a gente está vivendo no nosso cinema, essa visibilidade, essa colheita que está acontecendo agora, tem muito a ver com a organização. A gente começou a se organizar e criou o Fórum Setorial de Audiovisual, que é muito dinâmico e mobiliza muito as pessoas em torno da luta por políticas públicas e por direitos para os profissionais.

A gente tem alguns movimentos organizacionais bem fortes. O Alagoar é um deles, produz mídia em torno dessa produção, organiza, cataloga os filmes historicamente, fazendo um trabalho de preservação da memória, e uma crítica muito interessante. Há o surgimento de novos críticos, jovens colaboradores. Ninguém recebe, é tudo colaborativo por enquanto. Espero que ele cresça e se profissionalize, mas esse modelo é importante para dar êxito a ele. Outro movimento que eu cito também, que causa uma mobilização muito grande, é o Mirante Cineclube. Ele é um cineclube que tem uma força gigante, leva muita gente ao cinema. Eles fizeram a primeira Mostra Quilombo de Cinema Negro ano passado, foram três dias de cinema lotado, eles tem feito uma série de ações.

Esse movimento tem também produzido novos cineastas que estão fazendo seus filmes agora e vão despontar nesses próximos anos com um êxito artístico alto e uma força do cinema negro.

Sobre a projetos futuros e o hibridismo ficção-documentário na linguagem de Cavalo

RAFHAEL: A gente quer fazer dois filmes diferentes.

WERNER: A gente tem discutido ultimamente, porque Rafhael está com um longa e eu com outro, ambos de ficção, e a gente pensando, porque a gente sabe que é muito difícil chegar onde a gente chegou em Cavalo com uma outra estratégia.

Em Cavalo, tudo foi muito espontâneo, é muito difícil repetir isso em outros filmes, mas com certeza a gente vai trazer algo desse hibridismo pros outros filmes. Acho que vai contaminar, apesar de serem filmes de ficção. 

RAFHAEL: E ambos são bem mais clássicos.

WERNER: É, seguem um modelo, mas a gente está bastante impactado pelo processo de Cavalo, então com certeza ele vai trazer alguma coisa pra esses outros longas, só não sabemos ainda o que. 

RAFHAEL: Tem uma influência forte em um outro longa que a gente vai fazer, onde vamos voltar a co-dirigir, chamado Utopia. É um longa de animação que está muito dentro desse universo das religiões de matriz africana e da cultura negra, porque a gente fala sobre a história do quilombo dos Palmares.

Não é uma história sobre Zumbi, a gente está contando uma história que se passa dentro desse universo, mas é a história de uma família em busca desse quilombo. Com certeza muita coisa de Cavalo vai reverberar no Utopia. Agora, como a gente vai conseguir levar isso pra animação é um desafio que a gente vai pensar depois, mas a energia de Cavalo sem dúvidas estará lá.

Sobre as referências para Cavalo

WERNER: A gente é a soma de todas as referências. Eu acho que a gente tentou trilhar um caminho dentro de documentário que influenciou bastante o nosso processo de pensar em um filme híbrido. Eu particularmente venho do documentário, tinha feito alguns documentários antes do Cavalo, e a gente veio de Exú, que abriu as portas pra gente, e de experiência também. A gente tinha um método de filmar, de conhecer a coisa por dentro através da vivência, da experiência, não tinha um roteiro definido, apesar de Cavalo ter.

A gente tinha uma referência dos outros trabalhos, a gente leu, viu muito filme, discutiu bastante, a gente queria fazer um filme com essa pegada híbrida porque a gente sabia que tinha pouco dinheiro. Não só por isso, mas influencia bastante a questão de fazer um longa com 600 mil reais, é uma tarefa difícil.

Tem várias influências, vimos filmes que marcaram a gente, cenas que meio que trouxemos de outros filmes, discussões. Aí entra cinema brasileiro, o que estava se produzindo no cinema nacional naquele momento, e alguns cineastas que a gente gosta que tinham uma pegada parecida.

RAFHAEL: Teve uma pesquisa profunda de cineastas, de cinemas que dialogavam com as nossas buscas, com o que a gente queria fazer. O filme tem algumas referências bem diretas. Acho que o cineasta mais referenciado é o Bela Tarr. Tem duas cenas bem marcantes do filme, uma inspirada em Cavalo de Turim, o plano sequência que começa nas patas do cavalo e vai até a mãe do Leonardo, e aquela do vento, quando o filme tem aquele clímax poético no final, tem uma ventania muito parecida com a de uma cena do Satantango.

Além do Bela Tarr a gente conversava muito com o Yuri, o diretor de fotografia, sobre Pedro Costa, pensando principalmente na luz. O Apichatpong [Weerasethakul] é uma referência que veio muito a partir das locações. Quando a gente descobriu algumas locações, pensamos em como aquilo remetia à relação do Apichatpong com a geografia, de como um lugar periférico se projeta pro mundo. E também tem a questão do tempo do filme, acho que influencia no tempo do filme.

Tem também referência ao cinema contemporâneo brasileiro, pelo qual sou apaixonado. O cinema mineiro, a gente pensou em Sol Sobre os Homens, Corpo Elétrico, Esse Amor que Nos Consome

WERNER: Em Gabriel Mascaro também.

RAFHAEL: Totalmente. São coisas que a gente viu e conversou muito sobre, e estão nas nossas planilhas na parede.

Sobre o potencial do cinema alagoano em crescer dentro do Brasil, como o novo cinema mineiro e o novo cinema pernambucano

RAFHAEL: Eu penso o seguinte; Alagoas é um estado diferente de Pernambuco em diversas coisas. Alagoas é um estado muito pequeno, tem um PIB muito pequeno, uma economia diferente da economia pernambucana. É difícil pensar essa comparação porque são estados muito diferentes. Lá tem muito mais recurso pra produzir, muito mais produção. Acho que tem sim potencial de projeção pra nossa cena nacionalmente e internacionalmente, pensando em paralelo a Pernambuco ou até a outros estados do nordeste que estão tendo uma produção interessante.

A Paraíba está vivendo a primavera do cinema paraibano, o cinema mineiro me interessa muito, o cinema cearense cada vez mais está se projetando e chegando mais longe. Um dos filmes mais incríveis que eu vi ano passado foi Greta, que é um filme cearense.

WERNER: Pois é, acho que inevitavelmente quando os filmes começam a surgir em bloco como estão agora, novos realizadores, com Ulisses, Laís, o próprio Nilton com o longa dele, acho que sim, que fica clara a potência de um cinema. Não quantitativamente, mas em qualidade, com uma estética bastante singular e de destaque. Eu penso assim.

RAFHAEL: É isso o que você falou, uma estética própria.

WERNER: Eu acho que tem uma linguagem; se a gente ver os filmes a gente vai encontrar.

RAFHAEL: A gente não quer ser o cinema pernambucano, a gente quer ser o cinema alagoano.

Sobre a relação de Cavalo com o público brasileiro e com o público estrangeiro

WERNER: A gente tinha consciência; uma intenção e uma dúvida. Uma dúvida era se o filme estava ficando muito hermético, muito poético, muito artístico a ponto de atingir apenas um público específico. Outra era a da aposta na emoção; é um filme em que a gente aposta na emoção como conector com públicos diversos. Acho que acertamos nisso. Ele não só se comunica com o cinema de nicho, ou com as pessoas que tem uma referência de religiosidade ou uma referência local. Ele está tocando as pessoas através do sentimento e da emoção. O alcance dele ampliou por causa dessa força de expressão que está impressa nele.

RAFHAEL: E tem uma coisa que eu percebo no início da nossa pesquisa. Como a gente foi impactado quando a gente estava fazendo o Exú, com esse primeiro contato com a religião de matriz africana. Eu entendi ali uma força muito grande, naqueles processos, naquelas liturgias, de traduzir o Brasil. Lembro que quando a gente escolheu o cavalo como esse objeto, para pensar como se dá essa relação com a pessoa que incorpora entidades como o Preto Velho, o Caboclo e a Pombagira. São figuras marginalizadas da sociedade e da história brasileira, isso tem uma capacidade de falar muita coisa sobre o Brasil. São pessoas que estão incorporando também o imaginário do Brasil.

A gente viu que havia uma demanda por esses temas, um interesse por essas pautas, e que o cinema brasileiro contemporâneo não estava acompanhando. Claro que tem filmes muito importantes do Cinema Novo e de outros momentos que trazem esse tema, mas acho que o Cavalo traz isso pro cinema contemporâneo. Agora, não sei como ele bate pro público estrangeiro. Ele tem essa força pro brasileiro, não sei como o público estrangeiro o enxerga, se consegue decodificar muita coisa que tem ali, que é muito nossa. E há quem diga que é um filme pop.

Sobre a ressignificação da ancestralidade afro-brasileira

RAFHAEL: Tem essa relação de Alagoas com o quilombo dos Palmares. Alagoas é território desse movimento que foi o maior foco de luta pela liberdade contra a escravidão na América Latina. O quilombo dos Palmares durante 100 anos travou batalhas e estabeleceu uma sociedade alternativa no Brasil, que se difundiu pra outros quilombos no Brasil inteiro. Começou aqui, em Alagoas, no maior quilombo da América Latina.

Isso, pra nós, é um símbolo muito forte. O imaginário de Alagoas no Brasil é muito relacionado às pautas negativas; ao nosso IDH baixíssimo, à violência, aos nossos piores políticos, e não somos tão vistos como a terra de Zumbi dos Palmares. Acho que o filme também tenta reposicionar esse imaginário.

WERNER: Tem um dado histórico meio interessante, um making-of interessante. Quando rolou o edital, ia ter um longa. A gente se juntou e falou “cara, vamos fazer juntos”, e começamos a fazer um projeto. Era um documentário clássico sobre Zumbi dos Palmares. Uma semana, acho que uns dez dias antes do edital acabar, a gente, fumando um cigarro, Rafhael vem com essa ideia: “vamos falar sobre o cavalo”. A gente tinha tido uma experiência de Exu. “Vamos falar sobre o  médium, sobre o cara que incorpora”. E a gente já tinha iniciado uma pesquisa, já estava com o projeto do Zumbi em andamento, e oito dias antes a gente decidiu mudar a rota do projeto.

RAFHAEL: E por meio do Cavalo, achar Zumbi no contemporâneo.

WERNER: Trazer pro contemporâneo. A gente queria discutir mais pela perspectiva do contemporâneo, acho que Cavalo discute isso. Não na negação, não no lado dialético da dor, mas da força. Foco na afirmação e na força.

RAFHAEL: Eu vejo muito o Evez, que é aquele rapper [do filme], como um arquétipo, um avatar de Zumbi no filme. Ele traz Zumbi no discurso dele. Evez é muito influenciado por Zumbi, é o grande herói dele, e viveu na terra dele. Não tem como não influenciar um artista negro, rapper.

Sobre a figura do cavalo enquanto canalizador do passado no presente

WERNER: O cavalo é um elo, representa várias coisas; o médium que o incorpora, o inconsciente, o corpo, é um arquétipo do corpo, e é uma ligação entre o homem e o sobrenatural. Ele também tem esse papel, o de ser o condutor. Então ali ele aparece pra tudo isso, ele é o elo que une todos nós. Inclusive acredito que todos nós, nesse filme, somos cavalos, o filme teve essa condução, eu senti isso na montagem do filme, no roteiro.

A fluidez era diferente da fluidez de outros processos criativos, você sentia que você estava sendo uma antena em algum momento, algo estava vindo de outros lugares. Daí as coincidências simbólicas de que a gente encontrou ao longo do filme. Acredito que o cavalo te apresenta a tudo isso, a ligação com o passado, com a memória, com o inconsciente, com o corpo. 

RAFHAEL: Com a força, com um símbolo de força. Pra algumas culturas também ele tem uma relação com o símbolo da mãe. De alguma maneira, todo mundo é cavalo no filme, inclusive a mãe, a personagem da mãe, que é muito marcante.

Sobre o contato respeitoso com a religião

RAFHAEL: Tivemos esse contato muito próximo com as religiões de matriz africana a partir da pesquisa de cinema. Nós não somos especialistas, antropólogos; Werner e eu temos formação em jornalismo, somos documentaristas, eu faço filmes de ficção também… então nosso olhar é a perspectiva de um artista, de um documentarista.

Por isso também a gente teve uma busca muito grande de respeito, de escuta pra todos os processos, usando o jogo como uma dessas ferramentas, mas não só. A gente decidiu que, por não sermos iniciados na religião, teríamos ao lado sempre nosso assistente de direção, que era um cavalo. A gente chamou o Guilherme César, que mora em São Paulo, e ele ajudava muito nessa intermediação. 

Aquela cena da obrigação pra Omolu; é um plano sequência longuíssimo que está começando a ser problematizado. As pessoas se perguntaram se a gente poderia expor isso ou não. Aquela cena registra um pequeno trecho de um ritual, essa obrigação pra Omolu, que demora dias. A maior parte do ritual só pode ser feita e presenciada por pessoas iniciadas. E foi uma obrigação que o filme fez pra Omolu como um agradecimento e um pedido de permissão, pelo modo como a gente estava representando ele no filme. Nos foi permitido filmar só aquele trecho, para não expor os segredos e os mistérios da religião que não podem ser expostos. A gente respeitou muito isso; só mostrar o que de fato era permitido. Não havia sequer interesse nosso de ir além, expor qualquer segredo pra trazer um olhar exótico para aquilo. Pelo contrário, a gente queria desmistificar.

WERNER: O Guilherme uma vez falou assim pra mim, que a gente não ser iniciado fez uma grande diferença. Ele me falou, “cara, se eu estivesse fazendo um filme como esse, eu não sei nem se eu conseguiria terminar, porque tamanha responsabilidade, tamanha relação que você tem de segredos”. Como a gente não é iniciado, a gente não se sentia assim. Quando a gente estava filmando o Exu perguntávamos, “a gente pode entrevistar Exu?”. E a pergunta pareceu um absurdo, porque acho que ninguém chegava lá para entrevistar o Exu. Aí ele falou “vou consultar”, e depois que consultou “claro, pode, vem aí”.

Por não ser iniciado, também, a gente teve uma iniciação, um guia. Eles estavam nos guiando, de certa forma. E o nosso tratamento, por ser intuitivo, ele é muito mais intenso do que se a gente fosse iniciado. Teríamos mais pudor de entrar em certos temas que a gente penetrou por conta de não ser iniciado. Achei interessante o Guilherme ter falado isso.

RAFHAEL: Pro Guilherme foi um processo muito desafiador, essa fronteira entre o pessoal e o profissional era borrada às vezes, porque ele tinha que participar inclusive desses rituais. No caso dessa cena, ele dormiu no terreiro fazendo as obrigações junto com a comunidade do terreiro, e em momentos da cena de incorporação aquilo tocava muito ele. Ele chegava perto de incorporar em alguns momentos durante a filmagem.

A gente sempre tinha nas cenas, quando possível, a presença do babalorixá Leonardo, mesmo que ele não estivesse sendo filmado, para que, além de ser nosso guia de orientação, ele pudesse ter esses cuidados com o Guilherme, cuidar da equipe, nos dizer até a gente poderia ir, se a gente estava fazendo alguma coisa errada, guiando nosso respeito pelos objetos que a gente filmava.

WERNER: Esse limite ético esteve bastante na montagem. Você fica naquela, “será que isso vai soar muito forte ou negativo?”. Você tem esse cuidado, essa dúvida. A montagem é um momento de muita dúvida, você não sabe o que aquilo vai comunicar.

A gente discutiu várias cenas, em Exu a gente também teve esse medo. “Imagina se a gente der uma mancada dentro da religiosidade?”. Acho que no final tudo dá certo porque a gente está sendo guiado também, não só pelas pessoas que estão com a gente lá, mas por todas as outras que estão por aí.

RAFHAEL: Essa cena específica da obrigação, que é um dos planos mais longos do filme – e tem muitos planos longos, sequências longas – acho que tem onze minutos. Muitas pessoas perguntam o porquê de termos deixado um plano tão longo nesse momento, o do ritual, da exposição. Se ele ser tão longo não seria estar expondo demais um ritual que algumas pessoas acham que não deveria ser exposto. As pessoas, os babalorixás que estavam conosco entendiam que aquele trecho do ritual poderia ser exposto, e que outros trechos não poderiam ser.

Pensamos muito que cortar aquele plano, que colocar qualquer tipo de interferência nele para que a montagem fosse mais ágil ou mais aceitável para o público, seria uma forma de desrespeito com o ritual. Não preservar a liturgia dele inteira, completa, o modo como ela é, que foi extremamente marcante e impressionante de ver acontecendo pessoalmente. É minha cena preferida do filme. A gente pensou principalmente em preservar ela etnograficamente completa como forma de respeito àquele ritual.

Leia a crítica de Igor Nolasco para Cavalo.


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