Topical Dancer

Topical Dancer

Os belgas Charlotte Adigéry e Bolis Pupul elevam a quarta potência a ideia de dançar sob letras com comentários sociais

Egberto Nunes - 16 de fevereiro de 2023

A penúltima faixa de Topical Dancer, segunda colaboração entre a cantora caribenha-belga, de família nigeriana, Charlotte Adigéry e o belga Bolis Pupul, consegue traduzir a estranheza agradável da jornada sonora criada pela dupla. “HAHA” é o título e se constitui somente de um sample da risada de Charlotte sendo transformado em choro no decorrer dos 3 minutos da música. No fundo, o teclado harmonioso de Bolis constrói o ritmo e provoca a cabeça para dançar junto. A única frase captada por cima do trabalho de Bolis e da voz é “você tinha que estar lá”. É a recepção geral da obra: uma entrada incompleta dentro dos jogos de palavras, linguagens, experiências ou do modo de comunicação de Charlotte. A partir desse jogo, na medida do cômico, do inesperado e da segurança de andar em seu próprio terreno que os artistas provocam hipocrisias eurocêntricas de fala, questionamentos internos sobre a relação com o estrangeiro e o lugar da tecnologia na procura do próprio entendimento, sedimentado sobretudo no lugar do colonialismo e do racismo daquele país.

Dentro do projeto de 50 minutos, primeiro álbum da dupla, o convite para balançar junto em cima de um ambiente de electropop contagia, mas as letras imaginam um outro cenário, sem deixar de colar com os instrumentos. A sintonia da dupla é o controle onde a voz espera para o momento de impacto da pista ou quando o volume abaixa e ouvimos atentamente o que Charlotte está dizendo. 

Se eu mencionei HAHA como essa ideia de um local onde nunca vamos compreender totalmente, Bel DEEWEE o faz de outra forma. Boa parte do disco é cantada em francês, inglês e creole-haitiana, enquanto essa é em holandês. A letra é composta por Charlotte atendendo uma campainha, um telefone, fingindo ser um serviço de entrega ou Frederik de Witte, co-produtor do álbum, responsável por unir a dupla de artistas. O texto é basicamente ela se apresentando de diferentes formas. Há também a primeira aparição da voz de sua mãe, fingindo ser a filha. A confusão sonora — com sons justapostos tão próximos formando uma sequência tão rápida que fica difícil compreender o que está sendo falado — marca a experiência da chegada no disco, mas com uma produção que captura facilmente o ouvinte.

IT HIT ME, faixa que me fez conhecer a dupla, caminha por dois lados. Ela é, pela sua descrição lírica, sombria, mas em sua produção, contagiante, como a construção de uma faixa popular de balada. Ela conta uma história: o primeiro contato com a percepção sexual do corpo a partir do olhar do outro. Duas descrições em primeira pessoa, bem literais e pessoais com um fechamento abstrato, sobre “como flertar com frutas”. A voz de Charlotte é o que controla a mudança da música, mas também contorce a ideia da história, impactando a escuta. Charlotte Adigéry e Bolis Popul brincam o tempo todo com essas duas camadas: o controle da linguagem com a forma da batida eletrônica. 

Pincelar assuntos delicados em cima do eletrônico, com ironia, sarcasmo e deboche, ainda que não seja essencialmente novo, pode cair em uma paródia cringe. Em alguns momentos, isso quase acontece, como a faixa onde Charlotte questiona: “Siri, você pode dizer de qual lugar pertenço?”. Mas a dupla se afasta disso rapidamente, justamente por demonstrarem a noção do trato sonoro e linguístico do jogo do disco.

Se a letra soa direta e brincalhona demais, Bolis entra com algum arranjo para distorcer o que está sendo ouvido. Quando o assunto soa muito simples e direto, é possível notar a brincadeira com a gramática ou com a linguagem do que está sendo comentado. É comum ouvir um trecho em francês abaixo de um creoli-haitiano, ou algum do idiomas no meio de uma letra majoritariamente em inglês. O ponto do disco é torcer o cinismo das experiências raciais e de gênero também por meio da língua. Esperanto é o nome de uma língua feita para ser usada no mundo todo. Mas aqui, a faixa desse título conduz diversas provocações retóricas sobre a percepção universal de raça da branquitude, seja o cinismo da culpa branca ou do falso entendimento do imigrante.

Topical Dancer também se divide entre duas visões. Evidenciar a provocação, dialogando com quem escuta, pois ela é efetiva quando há um campo para ser explorado e atacado, ainda que não seja totalmente explicado. Por outro lado, não há uma abertura direta em faixas onde se destaca o movimento interno de Charlotte em brincar com a linguagem e fazer daquele mundo sonoro algo seu, com ideias e experiências que, ainda que a interpretação seja de quem vai ler a letra, é possível notar pontos onde o desenho completo nunca chega aos nossos ouvidos.

Cabe então a Bolis desenhar com loopings, sintetizadores e teclado e preencher o fundo dos diálogos da artista. É essa destreza instrumental que também faz Topical Dancer nunca deixar de percorrer uma medida muito única em como tratar desses assuntos: a dupla belga eleva a quarta potência a ideia de dançar sob letras com comentários sociais. Isso porque existe sempre um quê a mais carregado no tom da voz que dança em cima do beat. O que dizer da faixa onde Charlotte canta em três línguas: inglês, francês e na crioulo haitiano? Ao buscar a tradução, a artista literalmente está cantando sobre a beleza da sua própria fala, mas de um jeito incapturável, apreciado de maneira sincera somente por ela.

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