Batem à Porta

Batem à Porta

Entre o mundano e o fantástico

Wallace Andrioli - 2 de fevereiro de 2023

É curioso que a premissa de Batem à Porta remeta tanto a Nós (2019), já que os cinemas de M. Night Shyamalan e Jordan Peele são quase opostos (apesar de ambos lidarem diretamente com o horror e o fantástico). Nos dois filmes tem-se uma família numa casa isolada sendo assediada por estranhos que querem, a todo custo, entrar. Mas enquanto Peele prefere investir em narrativas lacônicas, nas quais poucas coisas são explicadas em prol de uma atmosfera geral de terror social, Shyamalan é um cineasta direto, para quem o que importa é contar uma história bem amarrada, que manipule com total eficácia as expectativas e sentimentos espectatoriais.

Em Batem à Porta, essa propensão do diretor indo-americano a evitar enrolações fica clara já de início: o filme abre com uma conversa entre a pequena Wen (Kristen Cui) e Leonard (Dave Bautista), líder dos invasores, estabelecendo a situação que tomará todo o restante do enredo. Se para os estranhos não há tempo a perder diante do objetivo de salvar o mundo (não à toa um deles, interpretado por Rupert Grint, se irrita com a necessidade de esperar que determinado personagem acorde para iniciar a revelação do que está para acontecer), o mesmo vale para Shyamalan e a contação de histórias – com a vantagem de que ele pode simplesmente suprimir ou comprimir esses tempos mortos na montagem, reflexão aliás proposta de maneira sofisticada no filme anterior do diretor, Tempo (2021).

No entanto, há aqui uma dualidade interessante: Batem à Porta é de fato bastante direto na forma como faz suceder acontecimentos que vão compondo sua narrativa com uma economia impressionante, e, como em Sinais (2002), Shyamalan conduz o filme para um lugar onde as coisas são de fato o que parecem ser. Nesse sentido, o diretor comenta o próprio cinema enquanto meio possibilitador do fantástico, inclusive perante um espectador descrente, afeito ao realismo pretensamente absoluto. Num certo momento, os protagonistas Eric (Jonathan Groff) e Andrew (Ben Aldridge) chegam a discutir essa necessidade de racionalização do que soa absurdo e eles estão ali, um pouco como James Stewart em Janela Indiscreta (1954), numa condição de ouvintes/espectadores (ainda que involuntários) de uma história a princípio inacreditável.

Por outro lado, Batem à Porta é o filme mais aberto de Shyamalan. Não há nele uma reviravolta explicativa que coloque tudo em seu devido lugar, tampouco uma concretização total do fantástico. Talvez as coisas sejam o que parecem ser. O comentário de Batem à Porta sobre o próprio cinema é, portanto, também no sentido da relação limitada estabelecida entre filme, realidade e espectador. A esse último muitas vezes basta uma âncora frouxa com o mundo externo, como os noticiários compilados e apaziguadores que surgem na sequência final, para se sentir autorizado a dar vazão a um anseio cada vez mais envergonhado por fantasia. Se Batem à Porta fala de fé, é sobretudo da fé na narrativa, postura que Shyamalan espera sempre do espectador de seus filmes. Mais que cavaleiros do Apocalipse no sentido bíblico, os quatro invasores são mensageiros da suspensão da descrença e do cinema de fantasia.

Já na diegese shyamalaniana, a aceitação do fantástico aponta de maneira ambígua para uma necessidade resultante de escolhas impossíveis que foram feitas. Aliás, o fato do diretor optar por manter essa ambiguidade demonstra seu carinho pelos personagens, distante de qualquer sadismo que eventualmente aproximasse o encerramento de Batem à Porta do de um filme como O Nevoeiro (2007), por exemplo. Shyamalan não desperdiça toda a construção empática de Eric e Andrew num final que o coloque numa posição de dominação arrogante e perversa dos destinos dos protagonistas. Demonstra, assim, uma consciência plena do papel do diretor de cinema, instância criadora e dotada de um grande poder a ser necessariamente usado, mas que deve se manter atenta à justeza do tratamento dispensado às suas criações. É de uma maturidade admirável.

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