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A Mula

A Mula

Corpo em evidência

Wallace Andrioli - 13 de fevereiro de 2019

Apesar da imagem fortemente associada à virilidade no cinema, Clint Eastwood nunca evitou o flagelo de seu próprio corpo nos filmes que dirigiu. Isso fica mais visível nos dois de natureza abertamente crepuscular: “Os Imperdoáveis” (1992) e “Gran Torino” (2008). Em momento chave do primeiro, o protagonista William Munny é brutalmente espancado pelo xerife Little Bill (Gene Hackman) e forçado a rastejar, humilhado, para fora do saloon em que se encontrava; já o segundo traz, no epílogo, a autoimolação do veterano da Guerra da Coreia Walt Kowalski. Sua última aparição é como um cadáver estirado no meio da rua. Por isso, não chega a ser surpreendente a forma como Eastwood se filma em “A Mula”.

Como seu personagem, Earl Stone, o ator/diretor tem quase 90 anos. Ele surge em cena com o corpo alquebrado, postura arqueada, caminhada lenta. Sua fragilidade é ressaltada pela presença ameaçadora dos brutamontes do cartel mexicano para o qual trabalha. O lado patético da velhice é explicitado quando Stone dança e se envolve com mulheres mais jovens. Mas, curiosamente, Eastwood imprime um tom leve, quase de comédia, a esses momentos do filme. A disposição para rir de si mesmo lembra “Cowboys do Espaço” (2000), até pela repetição do mote de homens velhos fazendo coisas inesperadas para sua idade, mas “A Mula” jamais abandona totalmente a melancolia que o protagonista carrega. Há, afinal, o interesse nesse sujeito meio trágico, com sérias dificuldades de evitar machucar seus familiares, e que, nesse sentido, guarda semelhanças com outros protagonistas eastwoodianos – especialmente Kowalski e Frankie Dunn, de “Menina de Ouro” (2004).

O tema da relação com a família é central em “A Mula” e vem do tratamento dado a ele alguns dos pequenos problemas do filme. O roteiro de Nick Schenk (que também escreveu “Gran Torino”) por vezes soa engessado pela mensagem que pretende passar, de que não vale a pena dedicar tanto tempo a obrigações profissionais se elas prejudicam a relação com as pessoas amadas. Stone repete esse mote algumas vezes, já que sofre as consequências de escolhas feitas nesse sentido, e há certo exagero expositivo sobretudo no início da história, quando o protagonista perde o casamento da filha para participar de uma convenção de cultivadores de orquídeas.

“A Mula” ganha força justamente quando passa a acompanhar o sujeito na estrada, realizando com competência um ofício arriscado. Fazer um trabalho bem feito, seja ele ligado à floricultura ou ao tráfico de drogas, parece uma maldição na vida de Stone. Eastwood é muito competente, como diretor e ator, em mostrar como isso afeta o personagem ao mesmo tempo negativa (a dor infligida à família) e positivamente (ele claramente sente prazer com a própria capacidade e com o reconhecimento dela).

Aliás, a partir dessa compreensão da ética do trabalho como alicerce da sociedade estadunidense, necessidade que pode também gerar efeitos devastadores nos indivíduos que cumprem rigorosamente suas tarefas, “A Mula” se aproxima de um dos melhores filmes recentes de Eastwood, “Sniper Americano” (2014). Nele, o militar Chris Kyle (Bradley Cooper) se torna o atirador das forças armadas dos Estados Unidos detentor do recorde de mortes em combate, mas a atuação na guerra do Iraque deixa marcas indeléveis em sua personalidade. Carrasco de centenas de pessoas, inclusive crianças, e porta-voz de um ufanismo agressivo, mas também um homem doente com estresse pós-traumático, Kyle deteriora as relações familiares e acaba assassinado por outro veterano do conflito no Oriente Médio.

Em três cenas de “A Mula”, Eastwood acena com pequenas provocações ao discurso progressista contemporâneo. Nas duas primeiras, faz piadas com personagens lésbicas e com o racismo presente no uso de determinado termo. Na terceira, parece se regozijar ao filmar corpos femininos seminus, durante uma festa na casa do chefe do cartel de Sinaloa, no México. No entanto, ainda que o diretor manifeste publicamente, em entrevistas, críticas ao “politicamente correto”, tais momentos se inserem com organicidade no filme, considerando, nos casos do racismo e da homossexualidade, a constantemente referida inadequação de Stone ao mundo atual, sua dificuldade de entender comportamentos muito distantes da época em que se formou como homem (algo explicitado principalmente nos vários diálogos sobre o uso de celulares); e, no caso das mulheres, a exuberância desses corpos jovens contribui para ressaltar a decadência da velhice experimentada pelo protagonista – e, claro, pelo ator/diretor. Se expondo ao ridículo, Eastwood torna “A Mula” mais um esforço consciente de desconstrução (ou reconfiguração) de sua já bastante complexa imagem.

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