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Belle

Belle

O conto de fadas do mundo gamer

Claudio Gabriel - 27 de janeiro de 2022

A realidade virtual está em toda parte. Cada vez as obras que usam do elemento da ficção-científica abusam de trabalhar o mundo cinerbético, fora da dimensão real. Contudo, importante lembrar como o cinema e a própria literatura já abordaram sempre isso. “Tron”, de 1982, e “Neuromancer”, de 1984, já trabalharam conceitos similares. Mas, trazendo para um universo contemporâneo, as histórias parecem ir atrás de dinâmicas sobre jovens, mas contadas sempre de um ponto de vista bem moralizante, quase para “adultos”. Em certo sentido, traz uma sinergia do problema desse universo digital sob uma ótica puramente negativa, sem compreender as complexidades que nela estão embutidas e são celebradas diariamente por adolescentes e crianças mundialmente.

Nesse sentido, toda a introdução de “Belle”, em que conhecemos a tímida e quieta adolescente Suzu que, quando vai para o mundo virtual U, se transforma na personagem título, podemos olhar para uma certa visão contrária. Não no lado mais simples dessa narrativa, é claro, visto que trabalha justamente a tentativa de aparecer para o mundo e ultrapassar os medos, algo típico de tramas jovens. Isso acontece dentro do terreno de como esse universo virtual (agora já até chamado de metaverso, porém que já teve contornos de “Second Life”) pode ser uma ferramenta de colaboração mundial.

A direção de Mamoru Hosoda tem esse olhar bem direto e sem fugir da dinâmica narrativa ao apontar uma grande releitura de “A Bela e a Fera”. Só que não necessariamente apenas a visão mais romantizada da Disney, de 1991, mas também uma brutalidade de mundo que está onipresente no clássico de 1946, comandado por Jean Cocteau. O elemento mais clássico, que é a relação entre uma bela menina totalmente virgem dos males do mundo, com um homem sendo uma fera, pagando por todos seus pecados, está encaixada aqui. Contudo, ela aparece em uma camada primordial, já que Hosoda observa o desenrolar da relação de compaixão entre os dois no mundo real, bem longe do fantástico.

Assim, é possível até pensar em “Belle” sendo uma certa subversão da história original. E até parece um pouco essa a intenção no longa, ao abordar um relacionamento que não tem nada de romântico, e sim numa tentativa de se encontrar no outro. Suzu se vê nesse outro garoto, especialmente por essa casca mais dura de brutalidade que ele possui, ao lutar contra a “guarda” do mundo digital. Ao mesmo tempo, estamos lidando também com uma compreensão sobre o peso da fama, já que Belle é uma popstar no U, celebrada até por garotas da própria escola, porém sem nunca assumir a identidade.

Em certo sentido, há até um quê de Ingmar Bergman de “Persona”, de 1966, ao trazer o grande jogo de máscaras da animação. É justamente essa brincadeira que também transforma a condição dramática da trama em muito mais real. Se, por um lado, Suzu tem um distanciamento do pai, especialmente pelo fato da mãe não estar presente em sua vida, o menino que é a ‘Fera’, por assim dizer, sofre violência do pai. Se na realidade virtual o homem pode proteger a mulher, a menina se vê como capaz de também ajudar o amigo que fez, por simples compaixão.

Mesmo tentando fugir de certos moralismos, fica claro como Mamoru Hosoda constrói “Belle” para ser a grande epopéia do encontro. Existe um caráter mais crítico para a forma como esse mundo digital tomou conta da sociedade, porém o cineasta está bem longe de ser apenas um apontador de problemas. Ele enxerga a relevância que esse mesmo universo consolidado por uma nova geração, é capaz de construir novos encontros. Até mesmo, de traz um olhar de proximidade para qual nunca foi pensado antes. Uma sequência talvez seja a grande catalisadora disso tudo: o momento em que a menina famosa do colégio descobre que Suzu é Belle, e a essa fala “ela é igual a mim”. No fim das contas, nesse grande conto de fadas (que é anti-conto de fadas) neofuturista, o que fica é uma observação de um mundo que pode ser construído de outra forma, se a tecnologia for pensada para nos deixar cada vez mais próximos e podendo mudar vidas.

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