Bronx (2020)

Bronx (2020)

Homens presos em um ciclo de brutalidade e masculinidade

Michel Gutwilen - 21 de junho de 2021

A primeira sequência de Bronx traz dentro de si a aura de tragédia que marca esta obra de Olivier Marchal, que possui como principal mote a inafastabilidade da morte. Começando com um flashforward, o que se vê é um homem (que mais tarde será revelado como um dos protagonistas) matando friamente sua família e a si mesmo. O uso deste artifício narrativo que mostra um acontecimento futuro (ou seja, uma consequência) antes de sua causa gera um direcionamento impositivo e afirmativo, de um destino já traçado. A certeza que se tem é que o fundo do poço é o único futuro possível daquele homem e que se irá acompanhar uma jornada de desgraçamento até que ele chegue naquela situação limite. Não há uma possível fuga, independente do que acontecer narrativamente. Portanto, em Bronx, a morte, ao ser início e fim, ao mesmo tempo, já se estabelece desde logo como um ciclo sem saída.

Ainda que este flashforward leve a crer que Bronx está mais interessado nos desdobramentos narrativos envolvendo um personagem específico, na verdade, seu principal foco é no ethos de imoralidade, sujeira e sangue que contamina toda a sua diegese. Até por isso, são muitos os personagens que vão aparecendo conforme a progressão do filme, principalmente dentro da força policial, o que gera a impressão de uma aparente falta de foco, quando na verdade o que se tem é um estudo comportamental de um microcosmos envolvendo as forças da lei. Ao adentrar nas raízes da Polícia de Marselha, desde os soldados “brutos” do Esquadrão Anti-Gangues até a as camadas hierarquicamente superiores, Marchal vai evidenciando que a corrupção existe para além de um nível individual, mas estrutural. Não há uma pessoa que esteja fora deste sistema, com exceção da única outsider, que é a filha do personagem interpretado por Jean Reno (Barbara Opsomer), justamente por não ter sido criada dentro dele.     

Aliás, poderia ser usado o termo “maldição” para a sequência de tragédias que rondam a narrativa, até porque a lógica aqui é extremamente determinista, não só pelo início em flashforward, como também pelo fim, que fecha uma espécie de ciclo de matança e constata novamente a certeza da morte. Ou seja, é como se aquele cosmos fosse regido por uma força maior que já condenou todas aquelas pessoas. Contudo, ainda que marcado por essa grande imobilidade do destino, Bronx também é bastante individualista, em um sentido de que se preocupa com a reflexão dos personagens sobre o peso de suas próprias ações e consequências. No entanto, ainda que exista esta autoconsciência por parte dos policiais, há sempre um fracasso em quebrar o ciclo maior do qual eles fazem parte. Por isso, contrastando com a brutalidade do universo extremamente masculino de Bronx, com sua parcela de sequências frias e brutais de ação, há uma melancolia e delicadeza nos momentos “entre as ações”, que fazem dele mais do que um mero exercício do subgênero policial “brucutu”. 

Desde a primeira cena sequência após o flashforward, quando o policial Vronski (Lannick Gautry) permite ao chefão do crime visitar, no hospital, sua mulher terminalmente doente, e depois consente que ele a assassine, em um ato de misericórdia, a morte é encenada com um peso dramático e serve para estabelecer um estranho laço de cumplicidade e respeito entre os aparentes lados antagônicos. Durante todo o filme, o que importa não é a lei escrita, mas sim a lei dos homens e da rua, que, apesar de viverem em lados opostos, seguem o mesmo respeito pelo jogo que jogam. Trata-se de um raro filme no cinema contemporâneo policial em que todos os personagens são colocados sob o mesmo espectro moral, sendo todos igualmente errôneos e disfuncionais. Os homens de Bronx se entendem na base de alianças, suborno e respeito. Eles sabem que a regra para a traição é a morte e aceitam isso. Assim, o que existe é apenas um aparente antagonismo entre polícia-bandido, porque o que mais importa para Marchal é que no fundo todos homens fazem parte de um mesmo ciclo de violência e se identificam como iguais dentro dele.

Não menos importante, a localização em que se passa a trama, que é a belíssima cidade costeira de Marselha, possui um papel crucial na construção deste tom reflexivo na mise-en-scène. O diretor Olivier Marchal e seu diretor de fotografia sabem aproveitar o azul do mar como fundo para compor diversos planos, servindo tanto como uma melancolia visual que se contrasta com o constante banho de sangue promovido entre os personagens, como também é responsável por reverberar um inconsciente desejo de fuga para longe desta terra amaldiçoada em que todos parecem presos. O mar e o seu horizonte estão lá, sempre visíveis, mas o que está além parece inalcançável, como se o microcosmos de Marselha fosse prisão da qual não há como sair, sendo possível apenas olhar pela janela o mundo da liberdade lá fora. 

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