Céu na Terra

Céu na Terra

Da Times Square ao bloco de rua carioca. Conflitos identitários e culturais.

Michel Gutwilen - 21 de agosto de 2020

Por que um filme sobre o carnaval carioca começa com dois idosos falando francês no meio de uma praia? Enquanto conversam sobre um palácio do império otomano que viram no noticiário, filmados sob planos rígidos e calculados, dando a impressão de ser aqueles mais um “daqueles filmes europeus”, elementos intrusos surgem na tela. Um bêbado fantasiado acorda no meio da areia e o som de apitos e tambores surgem no campo extra-diegético, passando a disputar espaço com o dialeto francês dos diálogos. 

Que comece o carnaval de Céu na Terra então? Errado. Agora vamos para um quarto de uma jovem adulta, Paula, marcado pela luz neon e pôsteres de bandas. Em seu laptop, ela está jogando Life is Strange, marcante por uma jogabilidade na qual é possível escolher que caminho seguir na narrativa. Não à toa, a diretora Raquel Monteiro escolheu o momento mais decisivo do jogo, no qual a protagonista deve fazer uma escolha altruísta (salvar o mundo) ou egoísta (salvar a namorada). Indecisa, sem coragem, Paula faz aquilo que a vida real não permite: sair do jogo antes de tomar uma decisão. Ainda no mundo virtual, essa pessoa, que parece indiferente ao carnaval, usa do Google Maps para viajar até Nova Iorque. O plano de dentro do desktop investigando a Times Square em 2D dá espaço para filmagens amadoras daquele mundo repleto de propagandas coloridas, letreiros enormes e aglomerações, ao som da música tema de Alicia Keys. Porém, esse sonho acordado rapidamente é interrompido, uma vez que uma música de Claudinho e Buchecha vinda do universo carnavalesco lá fora lhe traz de volta para a realidade.

Então o que temos neste início de narrativa “pré-carnaval” é este jogo de tensões entre o nacional e o estrangeiro. A praia é carioca, mas quem aparece são franceses. O “je se pais” é falado ao som do ritmo do tambor e apito. Nova Iorque é visitada através do quarto da Zona Sul. Empire State of Mind dá lugar a Nosso Sonho. Paula faz aquele típico papel de uma classe média jovem que rejeita sua própria cultura (o carnaval) e está mais interessada naquilo que o “mundo lá fora” pode oferecer. 

Finalmente, o Carnaval começa. Não mais Paula, mas agora quem vira protagonista é Patrícia. O escapismo não mais é virtual, mas acontece no agora, nos blocos de rua do Rio de Janeiro registrados através de câmeras de celular na vertical. O cabelo preso e o cigarro da primeira são substituídos pela peruca azul, a purpurina, a câmera analógica e a Skol Beats da segunda. Neste sentido, por mais verossímeis que sejam as imagens captadas durante as sequências de blocos, existe um claro recorte de um mundo tão fantasioso quanto aquilo apresentado previamente em Nova Iorque. Uma placa de “Fora Crivella” marca a luta sendo apropriada pelo festejo. “Índio quer haxixe, bala, doce e MD” no lugar da original canção “Índio quer apito, se não der o pau vai comer”. A festa paga “Minha Luz é de LED” que antes era um bloco de rua no carnaval. Carnaval como esse espaço de reapropriação e ressignificação. Ou seja, no fundo, não muito diferente do que acontece no núcleo de Paula. 

Contudo, Um Céu na Terra é menos um filme “crítico” de todos esses aspectos e mais um espaço de negociação, de investigação de tais hibridismos culturais. É justamente por isso que não haveria cenário mais ideal para o clímax do que um McDonald’s. O restaurante americano que se alastrou por todo lugar do mundo, se tornando menos um símbolo reconhecível da hegemonia de uma cultura sobre a outra e mais um espaço praticamente já camuflado no ambiente devido a sua normatização. Similarmente, o mesmo acontece quando Paula nota que Patrícia se fantasiou de maneira muito similar a Chloe, a protagonista de Life is Strange. Esta reage com surpresa ao comentário da amiga, uma vez que internalizou de maneira subconsciente aquele modelo padronizado de figura alternativa e rebelde. 

Diferente do jogo, no entanto, decisões precisam ser tomadas. Até aquele momento, ambas haviam buscado escapar da realidade, cada uma ao seu modo, aparentemente contratantes, porém mais similares do que imaginavam. Assim, a lógica dessa sequência do McDonalds pode soar até um tanto quanto ensaiada ou com aquela típica “cara de curta universitário”, tirando a força construída através dos paralelismos imagéticos nos dois terços anteriores de Céu na Terra. Mas até mesmo tais momentos, vistos dentro dessa mesma ótica que o resto do filme foi pensado, se encaixam nesta possível interpretação irônica de um filme consciente das próprias obviedades de seu recorte que trata. No fim, a diretora Raquel Monteiro volta a buscar a cinética do corpo, da aglomeração e a força da música. Enquanto houver dança e festa, a fantasia continuará.


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