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Estrada Sem Lei

Estrada Sem Lei

A história de Bonnie e Clyde pelos olhos de seus perseguidores

Wallace Andrioli - 1 de abril de 2019

Boa parte de “Estrada Sem Lei” é dedicada claramente a tentar desconstruir o mito de Bonnie e Clyde, em grande medida consolidado no imaginário popular pela obra-prima “Uma Rajada de Balas” (1967), de Arthur Penn. Há no filme de John Lee Hancock uma inversão da lógica do clássico de Penn, marco inaugural da Nova Hollywood: da valorização do marginal, do transgressor, se passa ao protagonismo dos homens da lei, humanizados, apresentados inicialmente como portadores de valores corretos. Isso se dá também no âmbito estético, já que, enquanto “Uma Rajada de Balas” é bastante moderno, incorporando truques visuais dos cinemas novos europeus (sobretudo da Nouvelle Vague francesa), “Estrada Sem Lei” se aproxima de um classicismo eastwoodiano, sendo construído a partir de imagens mais limpas e de uma relação estritamente funcional com a linguagem cinematográfica.

Na narrativa, essa contraposição entre os filmes é explicitada em algumas cenas específicas. Ao ouvir de um jovem policial, conhecido de infância de Bonnie Parker e Clyde Barrow, as circunstâncias que levaram à parceria conjugal-criminosa dos dois, o Texas Ranger Maney Gault (Woody Harrelson) rememora o primeiro contato com sua esposa, numa feira rural, e reflete sobre como a banalidade de sua trajetória jamais teria o destaque midiático da de Bonnie e Clyde. Pouco depois, Gault e seu parceiro, Frank Hamer (Kevin Costner), ouvem do frentista de um posto de gasolina um elogio ao casal de bandidos, por eles, supostamente, só roubarem dos bancos – que, por sua vez, roubam dos mais pobres. A indignação da reação de Hamer é compreendida pelo espectador, que compartilha com o protagonista a informação de que os ladrões em questão agem com extrema violência, assassinando policiais a sangue frio – “Estrada Sem Lei” mostra isso mais de uma vez.

Surge aqui um claro contraponto a uma cena de “Uma Rajada de Balas” em que Bonnie e Clyde, interpretados com aura trágica por Faye Dunaway e Warren Beatty, respectivamente, são surpreendidos por um homem que perdeu sua casa para o banco em meio à Grande Depressão e permitem a ele a catarse de atirar contra a placa com a ordem de despejo, cravada em seu antigo quintal.

No entanto, aos poucos “Estrada Sem Lei” vai matizando essa relação de negação automática de “Uma Rajada de Balas” e de mera substituição do heroísmo à lá Robin Hood dos criminosos pela exaltação da abnegação dos policiais. As coisas não são tão simples. Conforme a caçada se prolonga no tempo, e o filme consegue ser exaustivo no registro dela, Hamer vai se revelando uma figura mais sombria. No passado, ele comandou com certa dose de sadismo o massacre de um grupo de bandidos mexicanos. No presente, vai se tornando obsessivo com a missão que lhe foi confiada.

Hancock passa a filmar Costner como se estivesse num western revisionista, cada vez mais tomado pela escuridão que o cerca. Seu Frank Hamer tem tonalidades de Ethan Edwards (John Wayne), de “Rastros de Ódio” (1956), talvez mesmo de William Munny (Clint Eastwood), de “Os Imperdoáveis”. Nada, portanto, que remeta ao Eliot Ness que o ator interpretou em “Os Intocáveis” (1987), homem da lei impecável, bom moço, perfeito representante da ordem – mas que, ainda assim, num rompante de raiva arremessa um criminoso do telhado.

Na verdade, um filme com Costner que vem à mente diante de “Estrada Sem Lei” é “Um Mundo Perfeito” (1993), dirigido por Eastwood e escrito por… Hancock. Ambos se embrenham por uma interessante discussão sobre as origens da violência, tentativa de localizar o marco inicial de uma lógica que se tornará imparável. Em “Um Mundo Perfeito”, o também Texas Ranger Red Garnett (Eastwood) caça o fugitivo Butch Haynes (Costner) e rememora, lamentoso, o momento em que o prendeu pela primeira vez, ainda garoto. Na grande cena de “Estrada Sem Lei”, Hamer conversa com Henry Barrow (William Sadler), o amargurado pai de Clyde, sobre a primeira prisão de seu filho, por uma banalidade, e que o teria marcado para sempre como um fora da lei.

Por fim, e também carregando traços eastwoodianos, há a questão da espetacularização da violência, tema importante para o filme. Hamer e Gault são representantes de um outro tempo e, apesar de sua efetividade na missão de eliminar Bonnie e Clyde, eles seguem se sentindo como relíquias, cowboys ultrapassados tanto pelas técnicas modernas de investigação do FBI, então já comandado por J. Edgar Hoover, quanto pelo glamour adquirido por atividades criminosas violentas, espécie de evolução da mitologia criada no século XIX em torno de figuras como Jesse James e Billy The Kid. A cena do cortejo dos corpos de Bonnie e Clyde é bastante impactante nesse sentido.

Há na obra de Eastwood diversos personagens semelhantes a Hamer e Gault, de “Os Imperdoáveis” ao recente “A Mula” (2018), passando, claro, por “Gran Torino” (2008), cujo protagonista literalmente se sacrifica por um bem maior ao reconhecer seu completo anacronismo na contemporaneidade. Feita essa aproximação com o cinema de Eastwood, as cenas em que os Rangers de “Estrada Sem Lei” verbalizam sua incompreensão e criticam duramente o mito construído em torno do casal de criminosos passam a soar menos como um embate direto com “Uma Rajada de Balas” e mais como parte de um estudo complexo sobre dois homens tentando se localizar num mundo cujos signos já não dominam totalmente.

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