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Justiça Brutal

Justiça Brutal

Sobrevivendo na selva urbana

Wallace Andrioli - 11 de fevereiro de 2021

O texto a seguir contém spoilers de Justiça Brutal

A abordagem do universo policial proposta em Justiça Brutal está em consonância com toda uma tradição do gênero, que remonta à literatura hard boiled e ao cinema noir. O filme é protagonizado por dois detetives amorais, cansados, melancólicos, que frequentemente cruzam as fronteiras da legalidade. Personagens, enfim, bastante corriqueiros nesse tipo de narrativa. Mas S. Craig Zahler consegue submeter essas convenções a um estilo bastante particular.

Zahler não tem pressa em Justiça Brutal. Os planos longos são a regra e o diretor e roteirista posiciona muito calmamente as peças no tabuleiro da história que quer contar, inclusive postergando a apresentação dos dois protagonistas – Brett Ridgeman (Mel Gibson) e Anthony Lurasetti (Vince Vaughn). Há um demorado prólogo com um personagem (Henry, interpretado por Tory Kittles) cuja função só será totalmente revelada bem mais tarde.

Mas se não é de todo incomum diretores de ação investirem em contextualizações parcimoniosas, que funcionam como preparação para momentos espetaculares e picos emocionais, o que Zahler faz aqui é um pouco diferente. É como se a apatia que impregna as rotinas de Ridgeman e Lurasetti contaminasse o todo fílmico, em parte desdramatizando-o. Ocorrem perseguições, tiroteios e violência em Justiça Brutal, mas tudo filmado com certo distanciamento, quase protocolarmente. O que não implica em burocratismo: Zahler tem tesão pelo cinema que faz, mas tem também consciência do efeito que quer criar ao imprimir no filme o mesmo ritmo dos personagens.

Essa escolha, no entanto, não dilui o impacto dramático de Justiça Brutal. O caráter repentino e absurdo da violência presente na diegese produz alguns momentos bastante dolorosos, ainda que o diretor não precise mudar o tom do filme. O brilhante segmento com Jennifer Carpenter, cuja personagem é movida por uma pulsão desesperada por vida, exemplifica isso bem. Quase um filme dentro do filme, esse trecho contém, concentrada em si, a dimensão trágica que interessa a Zahler.

Mas, mesmo no caso dos dois policiais desencantados, existe tragédia. Sem edulcorar seu comportamento inadequado, Justiça Brutal faz deles figuras complexas: Ridgeman é um homem já na casa dos sessenta anos, que não conseguiu progredir na carreira (há, nesse sentido, o contraponto muito bem feito com o personagem de Don Johnson), tem problemas em casa (a esposa doente, a filha constantemente ameaçada no bairro violento em que moram) e mal consegue esconder seu racismo num mundo em transformação; já Lurasetti é mais aberto ao entendimento dos valores contemporâneos, se comporta de forma bastante pragmática e sonha em se casar com sua namorada.

E os dois morrem por não conseguirem se livrar das características definidoras de suas personalidades. Lurasetti, mais ingênuo, perece ao não perceber a iminência de um perigo que se aproxima lentamente, numa composição visual de Zahler que chega a ser cruel com o personagem – e brilhante enquanto construção fílmica, pelo impacto que produz. Ridgeman, por sua vez, não baixa a guarda da desconfiança racista numa situação que pressupunha a confiança na alteridade para possibilitar a sobrevivência. “Você devia ter confiando num negro”, lhe diz Henry, seu algoz.

Por fim, esse último personagem. Henry carrega uma combinação de fragilidade e força proveniente de sua condição marginal. Com problemas para resolver ainda maiores que os de Ridgeman e Lurasetti (recém-saído da prisão, irmão cadeirante, mãe desempregada que se prostitui), ele se mostra mais capaz de se adaptar às situações extremas com que se defronta. Seu final feliz é justo e realista, pois, dentre aqueles que tomam parte na ação de Justiça Brutal, ele porta os melhores valores (ama e defende a família, não é sádico e cumpre o que promete), provém de um lugar social de exclusão (ao contrário dos dois policiais, habituados a violentar pessoas semelhantes socialmente a Henry) e sabe como se comportar na “selva”, identificando o momento de recuar e o de atacar.

O encerramento de Justiça Brutal possibilita algum respiro diante da desolação total característica do cinema de Zahler, mas essa é uma brecha estreita e temporária, que surge por meio do reconhecimento da lógica selvagem que organiza a sociedade. Permanece aqui, portanto, o registro amargo recorrente na filmografia do diretor – Rastro de Maldade (2015) e Confronto no Pavilhão 99 (2017) são provavelmente ainda mais agressivos nesse sentido –, articulado a uma certa frieza imagética manifesta nos planos abertos e longos, que, pela distância, evitam o potencial sensacionalista decorrente das ações extremas presentes nos filmes.

As cenas de violência criadas por Zahler são sempre muito brutais, até exageradas, quase cartunescas, mas nunca prazerosas, pois permeadas pelas dimensões do repentino e do irreparável. O único prazer do diretor advém da possibilidade de contar histórias ambientadas em gêneros e subgêneros tão definidores do cinema americano. Justiça Brutal é como se o David Cronenberg de Marcas da Violência (2005) e Senhores do Crime (2007), interessado na destruição causada por atos de imensa brutalidade, refilmasse alguma obra-prima urbana contemporânea de Michael Mann.

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