O Albergue (2005)

O Albergue (2005)

Onde reside a verdadeira violência deste filme?

Michel Gutwilen - 24 de setembro de 2021

O espectador contemporâneo que vai assistir O Albergue, já com a sua fama estabelecida de ser um terror carregado de imagens viscerais e gráficas (ou seja, um exemplar do subgênero splatter), pode se decepcionar com a demora do surgimento desta característica dentro da narrativa. É somente um pouco depois da metade que o banho de sangue começa. Contudo, deixando as expectativas frustradas de lado, é preciso compreender que este filme de Eli Roth só funciona justamente porque a sua violência é antecedida por um contraponto “não-violento”, existindo uma relação dialética entre essas duas metades. Sendo mais justo — e por isso classificar filmes é sempre uma atividade imprecisa e problemática — faria mais bem à fama de O Albergue se ele fosse visto menos como uma obra de terror e mais propriamente um exercício multigênero (a primeira metade é claramente uma comédia) que quer se propor a produzir uma tese provocativa. Cabe aqui aprofundá-la. 

O primeiro ato, que começa como uma eurotrip de três jovens adultos — dois americanos e um islandês — pode se identificar como uma comédia de ares à American Pie. Neste primeiro momento, o ponto de vista que Eli Roth concede ao espectador é o mesmo de um dos seus protagonistas, Josh. Sua presença ajuda na aceitação do espectador diante das confusões que o grupo faz, pois ele é o mais tímido e ponderado dentro do trio, tendo acabado de sair de um relacionamento, posicionando-lhe como esta figura deslumbrada com a descoberta do mundo e que se deixa levar pelos dois outros ogro estúpidos que viajam  com ele. Neste sentido, um bom exemplar dessa mise-en-scène encantada é a da visita que eles fazem ao Red Light District, marcado por cores exuberantes, slow motion, uma trilha sonora entusiasmada e uma decupagem que enquadra as prostitutas de um jeito sensual, como se ele estivesse em uma espécie de paraíso onírico. Similarmente, um mesmo padrão se repetirá quando eles conhecerem as duas mulheres no hostel da Eslováquia.

Assim, o que se vê inicialmente é uma sequência de acontecimentos que mostram aqueles jovens usando deliberadamente drogas e álcool, cruzando com diversas mulheres nuas (a maioria prostitutas) e sempre fazendo muita baderna (da briga na boate à cantoria na rua de madrugada), além da constante homofobia e o tratamento objetificado de toda mulher por parte dos protagonistas. Inclusive, se serve de mérito extra à Eli Roth, tudo que acontece aqui envelheceu como uma captura do zeitgeist perfeito de uma geração, principalmente pelo uso narrativo dos celulares e câmeras típicos da época, associando a tecnologia como extensão da violência masculina, sempre servindo para o compartilhamento de mulheres peladas.

A partir de uma observação do que acontece na trajetória desses personagens específicos, é possível se aprofundar em uma análise mais abrangente e estrutural do que eles representam. Olhando a partir de uma perspectiva de gênero e geopolítica, essa eurotrip representa é uma espécie de jornada civilizadora ambientada no mundo moderno, no qual o país dominante não está mais atrás de matérias-primas, mas sim de um turismo sexual rumo à exploração das mulheres de todos os países que eles passam, marcando os territórios conquistados com seu sêmen. Somado a isso, toda a expansividade norte-americana e o seu egocentrismo também se fazem presentes: os turistas americanos acham que podem tudo e não há consequências para eles, se acham superiores aos nacionais do país e que todas as mulheres que eles encontram são potenciais presas.

Então, o que acontece após a segunda metade e o surgimento da casa de tortura é uma subversão de todos os valores apresentados até aqui, com os predadores virando a caça. São as mulheres que agora enganam eles, as crianças locais (teria Eli Roth se inspirado em A Cidade dos Amaldiçoados para reproduzir aquela gangue totalmente macabra?) que exploram eles financeiramente, e são os seus corpos que passam a ser objetificados e violentados. Logo, a reviravolta narrativa é que surge uma perspectiva de um punitivismo, quase como se os indivíduos de uma nação se juntassem como um coletivo para uma defesa nacionalista diante daqueles gringos que invadem seu país apenas para profaná-lo.

Por um outro lado, a tese de Eli Roth também se dá em um campo imagético, tanto a nível cinematográfico, quanto do próprio olho humano. Para estabelecê-la, o diretor filma em condições de igualdade os corpos nus na primeira metade assim como os corpos mutilados na segunda metade. Há prazer no olhar da câmera, que não se omite da frontalidade em mostrar tanto peitos e bundas, quanto um olho para fora, uma mão sem dedos ou uma cabeça cortada. Ou seja, o que ele propõe é a indiferença entre tabus, de uma aproximação do sexo com a violência e vice-versa. Obviamente, não é que Eli Roth esteja sendo um diretor “malvadinho” que defende a tortura, mas ela existe neste universo fílmico específico como um elemento transgressor e provocativo que serve como contraponto ao sexo. Afinal, é preciso lembrar que a maioria dos corpos nus que aparecem em O Albergue são de mulheres, sempre vistas pelos personagens masculinos como troféus a serem conquistados e devorados. Inegavelmente, existe uma certa violência, invisível, tanto no olhar tarado da câmera (em que o espectador é cúmplice) quanto dos personagens diante delas. 

O que se percebe é que existe uma relação de continuidade entre as duas práticas: o turismo sexual é apenas a ponta do iceberg de outros diferentes tipos de prazer peculiares que as pessoas buscam. Se aqueles homens são incapazes de reconhecer a violência de suas ações, é preciso que eles sejam obrigados a se olhar no espelho, como é o caso da rápida aparição do torturador americano, vivido por Rick Hoffman, que é propositalmente ridículo. Se é absurdo que seu personagem quase pareça sentir tesão com a empolgação em torturar alguém, a cena funciona porque fica claro que não há muita diferença entre ele e os três protagonistas. No fim, é a partir da relação dialética com a frontalidade da visceralidade que o invisível da violência do olhar se torna visível. Portanto, será que a violência do filme realmente começou em sua metade, ou ela já existia desde o início?

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