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Os Miseráveis

Os Miseráveis

Equilíbrio com posicionamento

Wallace Andrioli - 12 de fevereiro de 2020

A premissa de “Os Miseráveis”, de Ladj Ly, evoca a princípio “Dia de Treinamento” (2002), de Antoine Fuqua, pelo qual Denzel Washington venceu o Oscar de melhor ator. Tem-se aqui, afinal, um policial novato acompanhado por outros mais experientes em seu primeiro dia de serviço na periferia de uma grande cidade. E Ly de fato recorre a uma energia própria do gênero policial, ainda que se mostre afeito a um cinema bem mais engajado socialmente que o de Fuqua – por sua vez interessado primordialmente no embate entre personalidades opostas e na criação de uma situação de tensão crescente.

É um desafio não desprezível coadunar esse olhar crítico, direcionado a um contexto mais amplo e complexo como explicador da criminalidade, e algumas convenções de gênero. Sobretudo quando se atribui protagonismo a agentes da lei. “Dia de Treinamento” sequer tenta: no filme de Fuqua, os criminosos periféricos existem meramente como ameaças a um policial iniciante, que precisa passar por sua “prova de fogo”. Já “Tropa de Elite” (2007) talvez seja o caso mais conhecido de deslize nesse sentido: com o objetivo inicial de diagnosticar um estado das coisas e atacar a violência da polícia do Rio de Janeiro, José Padilha acabou produzindo no público empatia por um protagonista com forte propensão à psicopatia.

“Os Miseráveis” trafega por terrenos próximos a esses. O diretor instala a câmera no carro dos três policiais (interpretados por Damien Bonnard, Alexis Manenti e Djebril Zonga) que patrulham uma periferia de Paris no dia seguinte ao título da França na Copa do Mundo de futebol de 2018. Chris (Manenti), o líder desse esquadrão, se mostra sádico, violento e disposto a passar por cima da lei para fazer cumprir sua autoridade nas ruas. Lembra tanto o Capitão Nascimento de “Tropa de Elite” quanto o Alonzo Harris (Washington) de “Dia de Treinamento”. A tensão entre a polícia e os moradores do bairro escala e também é usada por Ly como um instrumento para testar Ruiz (Bonnard), o “calouro”.

Mas o diretor malinês é bem mais cuidadoso no equilíbrio das forças de seu filme. A brutalidade policial, mostrada sempre de forma frontal, não é contraposta, como em “Tropa de Elite”, a uma voz over do próprio agente da violência, que se explica e impõe sua visão sobre o crime. Ela simplesmente existe em “Os Miseráveis”, como também existem os pequenos delitos cometidos por adolescentes e a raiva que esses últimos manifestam no final. A cena derradeira é exemplar desse olhar direto de Ly: duas forças destrutivas frente a frente, prontas a exterminar uma a outra, reforçando o impasse característico dessa relação entre policiais e jovens periféricos.

Ao mesmo tempo que, por meio da frontalidade, Ly evita a amenização de ações brutais, ele se mostra generoso com os mesmos responsáveis por essa brutalidade, tratando-os como homens multifacetados que compõem uma realidade complexa. Nesse sentido, “Os Miseráveis” lembra “Notícias de uma Guerra Particular” (1999), documentário de João Moreira Salles e Kátia Lund que, curiosamente, compartilha com “Tropa de Elite” tanto o tema quanto a inspiração nas experiências de Rodrigo Pimentel, ex-policial do Batalhão de Operações Especiais (BOPE). Ambos, “Os Miseráveis” e “Notícias de uma Guerra Particular”, conseguem construir painéis justos e equilibrados sobre uma realidade que costuma instigar respostas simplistas.

O que não significa que “Os Miseráveis” não se posicione diante do cenário sócio-político que apresenta. Isso é feito de forma bastante inteligente, por meio de um recurso metalinguístico: o drone, instrumento produtor de um tipo de imagem-fetiche cada vez mais comum no cinema contemporâneo, mas também arma de forças policiais no patrulhamento de regiões conflituosas – novamente José Padilha tratou desse tema, na sua malfadada versão de “Robocop” (2013) –, surge aqui nas mãos de um adolescente morador da periferia. O controle exercido por esse personagem sobre as imagens de violência em seu meio permite virar o jogo contra o domínio policial, tanto num âmbito estritamente diegético (os registros da brutalidade gratuita exercida sobre o garoto Issa), quanto no que concerne à constituição de uma espécie de lugar de fala no filme. Por meio das imagens aéreas do drone, é quem vive dentro daquela realidade que lhe consegue lançar um olhar panorâmico.

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