Titanic

Titanic

O amor nos tempos das máquinas

Wallace Andrioli - 16 de fevereiro de 2023

“O que caracteriza a decupagem clássica é seu caráter de sistema cuidadosamente elaborado, de repertório lentamente sedimentado na evolução histórica, de modo a resultar num aparato de procedimentos precisamente adotados para extrair o máximo rendimento dos efeitos da montagem e ao mesmo tempo torná-la invisível. […] Tudo neste cinema caminha em direção ao controle total da realidade criada pelas imagens – tudo composto, cronometrado e previsto. Ao mesmo tempo, tudo aponta para a invisibilidade dos meios de produção desta realidade. Em todos os níveis, a palavra de ordem é ‘parecer verdadeiro’; montar um sistema de representação que procura anular a sua presença como trabalho de representação.”

(Ismail Xavier)

“[…] Tendo colocado os atores em seus lugares, os diretores dinamizam os diálogos pela montagem e por outros artifícios cinematográficos. Chamaremos esse novo estilo, que emergiu nos anos 1960 e se difundiu enormemente nos anos 1980, de continuidade intensificada. […] No entanto, a montagem mais rápida não levou os filmes de Hollywood às descontinuidades da montagem soviética do cinema mudo. Via de regra, […] a montagem simplesmente acelera o ritmo das cenas apresentadas de maneira comum.”

(David Bordwell)

“Em resumo, o cinema de atrações solicita diretamente a atenção do espectador, incitando a curiosidade visual e fornecendo prazer através de um espetáculo excitante – um evento único, seja ele ficcional ou documentário, que é interessante por si só. […] Claramente em algum sentido o recente cinema de espetáculo reafirmou suas raízes no estímulo e em passeios nos parques de diversão, no que pode ser chamado de cinema de efeitos de Spielberg-Lucas-Coppola.”

(Tom Gunning)

 

O ato de narrar está profundamente ligado à tragédia do Titanic. As muitas versões fílmicas dessa história, que lhe atribuem diferentes simbolismos, já apontam para isso. Dois exemplos: em Titanic (1943), de Herbert Selpin, ela serviu de propaganda anti-britânica na Alemanha nazista, com a ganância capitalista dos responsáveis pelo naufrágio remetendo à moral da nação inimiga como um todo; dez anos depois, em Náufragos do Titanic (1953), de Jean Negulesco, a primeira e última viagem do então mais luxuoso navio do mundo foi usada para falar de um casamento em crise, que reencontra, na iminência da morte inesperada, o amor perdido. Mas foi mesmo James Cameron quem explicitou essa relação, ao construir seu Titanic (1997) como um relato de memória (até certo ponto, se poderia dizer, duvidoso, já que impossível de ser totalmente verificado) de uma senhora de cento e um anos.

Para a velha Rose (Gloria Stuart), só faz sentido narrar sua passagem pelo navio e o amor arrebatador por Jack Dawson (Leonardo DiCaprio) com os floreios que considera necessários para uma legítima imersão nessa experiência: na cena que inicia o retorno memorial de Rose ao passado, a personagem tem sua frase introdutória (“Já faz oitenta e quatro anos…”) interrompida bruscamente pelo pragmatismo do principal interlocutor, o caçador de tesouros Brock Lovett (Bill Paxton), que, interessado numa informação especifica que ela pode ter, lhe diz que qualquer lembrança será útil, ao que Rose retruca perguntando se Lovett quer ouvir ou não. Tem-se aqui, portanto, a superação de um impulso realista a respeito das possíveis condições da memória de uma senhora dessa idade pelos artifícios próprios da contação de histórias.

É verdade que em A Camareira do Titanic (1997), lançado na Europa alguns meses antes do épico de Cameron, Bigas Luna também deu destaque, de forma até mais explícita, a esse gesto narrativo relacionado ao célebre naufrágio, ao acompanhar a jornada de um operário francês que, após conhecer uma bela mulher que trabalharia no navio, passa a ganhar a vida contando versões (picantes num primeiro momento, românticas posteriormente) do que teria vivido com ela, pouco antes de seu embarque para a morte no Titanic. No entanto, no caso de Titanic há uma ligação com o cinema de Cameron como um todo que merece ser ressaltada, para a devida compreensão das discussões propostas no filme.

O Exterminador do Futuro e sua primeira continuação (1984, 1991), Aliens — O Resgate (1986), O Segredo do Abismo (1989) e Avatar (2009), por exemplo, têm no centro de suas narrativas a questão da relação entre técnica e humanidade. Neles, esses dois elementos surgem em constante tensão: o homem atinge a grandiosidade por meio da tecnologia (a inteligência artificial Skynet, a capacidade de realizar viagens interplanetárias ou submarinas e de dispor de armamento pesado para enfrentar ameaças alienígenas), mas acaba ou derrotado por ela própria, caso de O Exterminador do Futuro, ou superestima o poder que detém ao dominá-la. Titanic se enquadra aqui. Os responsáveis pelo navio, representados pelo diretor como homens dotados de empáfia suficiente para desafiar Deus (e também como tolos desprovidos de qualquer cultura, incapazes de reconhecer Picasso ou Freud), são, nesse sentido, semelhantes aos militares de Aliens e Avatar, que se imaginam indestrutíveis pelo poderio bélico que possuem.

Essa tensão está presente no próprio procedimento cinematográfico de Cameron. Apesar de crítico do uso arrogante da tecnologia pelo homem, seu cinema é extremamente dependente dela para alcançar o tamanho que frequentemente almeja. Em Titanic não é diferente: o diretor tem orgulho de cada plano que compõe a reconstituição do naufrágio, só possível na escala e com o grau de realismo apresentados graças aos avanços promovidos nos efeitos visuais; mas, ao mesmo tempo, ele comenta negativamente, também no momento de introdução da narrativa pela velha Rose, a tentativa de um dos personagens de reconstruir a tragédia do navio num computador. Faz-se necessário o elemento humano, trazido pela narradora.

No fim das contas, é dessa forma que Cameron pensa seus filmes. Ainda que deslumbrado pelo componente técnico e usando-o de maneira pragmática (essa própria cena da reprodução do naufrágio do Titanic num computador lhe serve narrativamente, como uma espécie de maquete para o que será mostrado posteriormente, em tamanho real), o diretor só vê sentido nele quando subordinado à narração de uma história humanamente poderosa. E Titanic marca, na filmografia de Cameron, o auge da combinação da técnica com o humanismo, já que se constitui do encontro entre o cinema de ação tecnológico realizado por ele desde a década de 1980 e o romantismo clássico das histórias de amor em tempos de grandes catástrofes — que, ao menos na era do filme falado, remete imediatamente a …E o Vento Levou (1939) e Casablanca (1943). O diretor é muito eficiente no estabelecimento de um equilíbrio nesse encontro, conduzindo com timing perfeito a passagem do romance à correria desenfreada pela sobrevivência.

Cameron é preciso nas sequências de ação, carregando-as de tensão e energia sem abrir mão da elegância visual que o distingue, por exemplo, de um Pearl Harbor (2001), exemplar do mesmo tipo de narrativa: nos momentos mais intensos de Titanic, ele usa um número menor de planos que Michael Bay, enquanto sua câmera se movimenta bem menos e sem exibicionismo ou histrionismo. Isso permite ao espectador uma fruição classicista da ação, na qual seus componentes (posicionamento e movimentação dos atores e objetos no quadro, interação entre os diferentes espaços das cenas etc.) são mais facilmente capturados pelo olhar. Experiência distante, portanto, de qualquer abstracionismo decorrente da velocidade excessiva das imagens, algo que acontece com frequência nos filmes de Bay. Cameron realiza uma síntese primorosa entre a continuidade intensificada identificada por David Bordwell na Hollywood contemporânea, a decupagem clássica e alguns toques do cinema de atrações, conforme a definição de Tom Gunning.

Mas o filme também é extremamente exitoso na construção e condução do romance. O diretor faz uso de tipos e situações folhetinescas, injetando-lhes energia por meio justamente da concepção estética moderna de seu cinema. Titanic espelha personagens e cenas de Náufragos do Titanic (invertendo, por exemplo, as posturas das mães e filhas protagonistas de cada narrativa em relação àqueles provenientes de outras classes sociais) e do homônimo nazista (a representação muito negativa dos responsáveis pelo navio), mas, diferentemente de Negulesco e Selpin, Cameron não submete a história que está contando a intenções metafóricas. Ainda que jamais perca de vista a dimensão grandiosa do evento encenado, sua postura é de adesão absoluta aos dramas pessoais vividos durante as horas finais do Titanic, especialmente, claro, àquele dos protagonistas, jovem casal apaixonado que tem suas pretensões amorosas vedadas, num primeiro momento, pelo pertencimento a classes sociais distintas, e, posteriormente, pelo naufrágio.

O resultado é uma das mais marcantes histórias de amor do cinema contemporâneo, alicerçada em cenas – Rose e Jack na proa do navio, a feitura do desenho, o sexo nervoso e juvenil e todos os demais momentos de descoberta apaixonada dos protagonistas, a jovem pulando de um bote salva-vidas de volta ao Titanic, estabelecimento definitivo de um vínculo inquebrantável – e falas carregadas de um romantismo irresistível, também ele muito característico do cinema de Cameron, sempre atento aos afetos e ações que considera mais primordiais.

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