“Evento de TV” e “Golpe de Ouro”

“Evento de TV” e “Golpe de Ouro”

A História como gabinete de curiosidades

Wallace Andrioli - 15 de abril de 2021

Em boa parte do tempo de sua narrativa, Evento de TV se assemelha a um making of do filme O Dia Seguinte (1983), de Nicholas Meyer, daqueles disponibilizados como extra de DVD. Jeff Daniels, o diretor do documentário, busca investigar como essa obra televisiva, mas posteriormente lançada nos cinemas de diversos países, impactou a sociedade norte-americana no auge do recrudescimento das tensões com a União Soviética, durante o primeiro governo de Ronald Reagan (1981-1985).

Quando Daniels propõe realmente se dedicar a essa investigação, o filme se torna mais interessante, ainda que aqui e ali derrape numa leitura um pouco exagerada da influência de O Dia Seguinte na distensão da Guerra Fria nos anos posteriores ao seu lançamento. Há em Evento de TV a dedução de que o drama apocalíptico de Meyer conscientizou o presidente dos Estados Unidos a respeito dos horrores de uma eventual guerra nuclear – a fonte para isso é uma brevíssima referência ao filme no diário de Reagan.

Essa dimensão hiperbólica, de toda forma, não deixa de ser coerente com o restante do documentário, considerando que os vários depoimentos de envolvidos na produção de O Dia Seguinte são no sentido de superdimensionar os riscos que correram e o êxito alcançado. Novamente, predomina a aparência de um material extra, feito para exaltar o filme principal de um DVD.

Falta, sobretudo, interesse verdadeiro pelas cenas da paranoia oitentista recuperadas por Daniels. Como num documentário típico do jornalismo cultural hegemônico, importa o pitoresco, a apresentação de curiosidades sobre um filme do passado por meio da celebração de seus realizadores, a criação de uma interpretação coesa sobre um tema, para a qual todas as vozes e imagens convergem, sem qualquer tensão. É melhor rever o episódio The Day After da quarta temporada de The Americans.

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Apesar de tratar de um tema completamente diferente, Golpe de Ouro, de Chaim Litewski, acaba acenando para uma abordagem semelhante à proposta em Evento de TV. Não no sentido da exaltação de uma obra ou de determinados personagens históricos, mas no tratamento pitoresco dado ao passado. Litewski, diretor do bom documentário Cidadão Boilesen (2009), retorna aqui a 1964, para investigar a campanha “Doe ouro para o bem do Brasil”, organizada e conduzida pelos Diários Associados com o objetivo de angariar apoio financeiro e simbólico para o governo instalado após o golpe civil-militar.

O assunto é, claro, interessantíssimo, mas o diretor não consegue escapar da armadilha de ridicularizar o episódio, por meio da adoção de um tom cômico, de uma associação forçada com uma passagem do Velho Testamento e da comparação descuidada, na cena final, com o presente político do Brasil. Lembra aquelas páginas nas redes sociais dedicadas ao humor involuntário das direitas brasileiras, que no fundo carregam certo desespero pela  capacidade que esses grupos têm de, com toda sua histeria e paranoia, articular setores consideráveis da sociedade e, no limite, chegar ao poder.

Ainda assim, Litewski busca a legitimidade historiográfica por meio da entrevista de Janaína Martins Cordeiro, pesquisadora das direitas desse período, mas suas falas restam soltas em meio às várias outras de pessoas que testemunharam a campanha de doação de ouro para o novo regime e que estão ali para ressaltar a dimensão enganosa da referida campanha. O filme é, nesse sentido, bastante repetitivo, com depoimentos que não fazem a narrativa avançar muito. Repetição e indefinição talvez evitáveis se Golpe de Ouro fosse um curta-metragem meramente interessado em realizar uma crítica ácida, por meio da montagem iconoclasta de cenas do passado.

Mas o que se tem aqui é o oposto, já que o desinteresse pelas imagens de arquivo é quase total. Elas existem no documentário para atender a fins puramente ilustrativos: confirmam o que é dito pelos entrevistados e não recebem qualquer tratamento minimamente sofisticado. Esse é, aliás, um mal recorrente no cinema documentário brasileiro que aborda o período da ditadura militar: a vontade de soar “importante”, através da narração de fatos de um passado que explicaria muitos aspectos do presente, atropela sem dó a criatividade visual.

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